Arquivo

HH

O poeta – poeta é aquele que, como os cometas, sabe aparecer e desaparecer. Herberto Helder diz: “Se perguntarem: das artes do mundo?/ Das artes do mundo escolho a de ver cometas/ despenharem-se/ nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,/ charcos entre elas./ Quero na escuridão revolvida pelas luzes/ ganhar baptismo, ofício./ Queimado nas orlas de fogo das poças./ O meu nome é esse.” E, depois de o dizer, o poeta caminha para o sítio do silêncio, pois sabe ser aí que a terra treme e que o fogo se faz.

Neste hoje rodeado de tumultos tímidos, de gritos gratuitos, de barulhos baratos, quero trazer aqui a quase perfeita invisibilidade e o silêncio de Herberto Helder, que valem mais, na sua chama oculta, do que a voz do vazio que nos cerca. A sua arte é a de aparecer e desaparecer. Aparece para nos entregar a sua poesia incandescente e desaparece, logo a seguir, para o lugar onde as palavras não se cansam de esperar. Com ele, não há dizer por dizer, nem falar por falar, nem estar por estar. O que há a fazer por ele, apenas a obra o faz, o fará. Não há promoção da imagem, do livro, da fama, como a praticada esforçadamente pelos que põem mais talento e mais trabalho na propaganda da obra do que na obra, cumprindo esta lei quase imutável: quanto mais medíocres, mais “mediáticos”; quanto mais nulos, mais loquazes; quanto mais insignificantes, mais auto-suficientes. Num tempo em que os que escrevem mais baixo são os que falam mais alto e em que muitos escritores – mesmo poetas – não resistem à tentação de usar as palavras para negar as palavras, caindo na “tagarelice da época”, saúdo, na invisibilidade e no silêncio de Herberto Helder, um raro exemplo de recusa, de responsabilidade, de integridade ética e poética.

A sua é uma poesia de grande voo vocal. Gosto de me aproximar do seu céu de palavras e olhá-las como se olha um prodígio lento. Aí, as imagens do mundo são a força que nos atravessa como uma corrente eléctrica de alta intensidade. E é sobre este fundo de ziguezagues de luz e de relâmpagos de escuridão que o seu silêncio se ergue como uma montanha de grande escala e de árdua escalada.

Embora os desprevenidos e os frívolos possam pensar o contrário, a renúncia mundana de Herberto é o resultado da atenção ao mundo. E o seu recuo do onde a vida não está, a sua rejeição do que entorpece e vicia as palavras é uma escuta do que não se deixa afogar no tempo estéril, como num mar viscoso e sujo.

Elevando-se sobre o melodrama existencial e crescendo para a grande tragédia cósmica dos elementos essenciais, à sua poesia convém o silêncio dos astros que persistem. Diz ele: “Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar/ – a morte é passar, como rompendo uma palavra,/ através da porta,/ para uma nova palavra. E vejo/ o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição/ através da porta de outros corpos./ Como uma qualidade ardente de uma coisa para/ outra coisa, como os dedos passam fogo/ à criação inteira, e o pensamento/ pára e escurece.” Assim o silêncio íntegro de Herberto Helder nos reconduz à vida e à sua música mortal. E isso nos basta para não nos bastarmos.

Por: José Manuel dos Santos

Sobre o autor

Leave a Reply