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Hermínio, o último pastor

Domingo de manhã. Cedo à tentação de ficar a dormitar e arranco, a solo, com o meu Land Rover em direcção ao coração da Estrela, numa viagem propícia à introspecção. Lá, na Senhora de Assedasse, onde o sol chega mais tarde e se põe bem cedo, afastado de tudo, vive um dos últimos pastores da Serra da Estrela – Hermínio – homónimo dos montes que o rodeiam e baptizados com esta graça pelos romanos. Vou reencontrar um amigo que tive a sorte de conhecer, numa das nossas deambulações de bicicleta por aquelas bandas. Reconheci-o pelo jeito e pela forma, lá, num dos “panos” (como ele denomina um pedaço de terra coberta de erva) onde pastava as suas ovelhas. Tinha-o visto no, duplamente premiado e imperdível, documentário de Jorge Pelicano: “Ainda há pastores?”. No seu modo simpático e empático, logo meteu conversa connosco, dizendo-nos que o nosso veículo, a bicicleta, tinha um “fraco motor”, que tínhamos que, ainda por cima, puxar por ela. Rimo-nos. Das apresentações às histórias, Hermínio, à sua maneira, hipnotizou-nos e mal demos por ela, já tinha passado uma hora e os “motores” já tinham esfriado, pelo que nos foi duplamente difícil retomar a nossa jornada: Deixar para trás o pastor contador de histórias e pôr em marcha os músculos que nos levariam a um almoço em Folgosinho. Mas prometi voltar. E voltei, já, várias vezes.

Meto-me no “jipe” em direcção ao alto de Famalicão onde, no cruzamento, entro em terra rumo a Assedasse. Passando pelo Fragusto, alto da Azinha, portela do Sameiro, ando mais um quilómetro, deixo à esquerda o alto do Corredor de Mouros e viro à direita. Inicio a descida, chego a um dos cotovelos, sobranceiros ao belíssimo vale do Mondego e, lá em baixo, a capela da Senhora de Assedasse. É indescritível a beleza e a paz que, cá do alto, é transmitida por aquele quadro. Uma carpete de rectângulos amarelos e verdes, como peças de um puzzle, ladeiam as, ainda, cristalinas águas do rio Mondego. Lá, do outro lado da encosta, pontos brancos e móveis, denunciam a presença de Hermínio e do seu rebanho. Faço-lhe sinais de luzes e apito-lhe, mas quebrei o silêncio daquele quadro. Mais dez minutos e estou lá. Atravesso o rio, inicio a subida para a portela de Folgosinho, saio do caminho e atalho por um dos “panos” amarelos com o meu “Disco” e estaciono-o. Abro a porta, está um frio cortante, mas nada que uma camisola interior, um polar e dois casacos não resolvam, assim como dois pares de meias, dentro de umas botas de montanha e ainda o garruço. São onze e meia da manhã. Hermínio vem receber-me, saudamo-nos, parecemos já velhos amigos. A corta mato, por entre túneis feitos pelas giestas, chegamos ao outro lado de uma linha de água, a um “pano” verde onde, ao som dos chocalhos, pastam calmamente uma dezenas de ovelhas e cabras. Como acontece sempre, com Hermínio temos que estar sempre a comer e a beber, então, às três pancadas, detecta a direcção do vento cortante, improvisa abrigo e mesa. Para tal, conta com a sua pedoa, (como este Word é ignorante, sempre a sublinhar! Também o Google, pergunta-me se não quis dizer “perdoe”. Não, não quis!) – objecto em forma de foice, no entanto mais pequeno e mais robusto, um híbrido de foice e machado – empunha-a e desbasta algumas giestas, cujos restos empilhados e distribuídos pelo chão, passam a servir de mesa e tapete. Do seu alforge saem iguarias como presunto de javali, presunto de porco, ainda verde, mas salgado, queijo da Serra (do genuíno), chouriço com colorau e um pão que se mantém comestível durante uma semana e que é cozido em forno de lenha. Tudo isto produzido pelos quinteiros do Casal de Assedasse com os quais Hermínio (con)vive desde os doze anos. O repasto é regado com um bom tinto que partilhamos da garrafa. Do local íngreme onde nos encontramos avista-se grande parte do vale. Ao fundo corre, agora, mais cheio, o Mondego. Os cheiros, os sons, a chuva que ameaça, mas não chega a cair, o vento, o sol envergonhado que se vai retirando, a conversa que vai correndo, as horas que passam a voar e o rebanho que em uníssono começa a retirar-se porque que está na hora de regressar. Tudo configura um quadro de tranquilidade e bem-estar apenas alcançável por alguns sortudos, onde tenho a sorte de me incluir. A meio da jornada, para ajudar na digestão, ajudo-o, encosta acima, a acartar os paus que servirão de esteios por onde passará o fio, electrificado por uma bateria de doze volts, alimentada por uma placa foto-voltaica a qual também tem que ser transportada, costa arriba. Improvisa-se uma cerca móvel que servirá para conter o rebanho. Este pequeno exercício apenas demonstra um pouco da dureza desta profissão, se somarmos a isto a ordenha bi-diária de uma centena de animais, o apascentá-los sob todas as condições climatéricas, 365 dias por ano, o percorrer vários quilómetros diariamente e o ajudar noutros trabalhos agrícolas, entre outras coisas, temos uma vaga ideia do que é ser-se pastor ali, na Assedasse.

Hermínio confessa-me que a vida ali é muito dura, que anseia sair. Se, ao menos, uma fêmea lhe viesse fazer companhia…Mas que fêmea moderna o quereria fazer e compartilhar tarefas tão duras como as que ele tem que realizar catorze horas por dia? Hermínio está profundamente dividido. Não se revê a fazer outra coisa, ama a Serra e a liberdade que lhe proporciona, apesar dos apelos do mundo para lá dos montes.

Actualmente com 33 anos, é o mais jovem pastor dos sete que ainda existem por aquelas paragens. A lindíssima Assedasse e o seu verdejante vale correm o risco de ficarem desertos de gente. No entanto, há um forte impulso que leva a que pessoas como eu, corram para lá sempre que podem, para absorverem, até ao tutano, a natureza no seu estado quase selvagem, para se perderem no seu seio, para se sentirem pequenos perante a mãe-natureza. É arrepiante o silêncio com que nos deparamos, quando calamos o barulhento motor diesel, quase que dói. Os nossos ouvidos não acreditam que não estão a ouvir, pois os decibéis emitidos por Ela são demasiado baixos e só fica uma estranha pressão de ar sobre os tímpanos, como um grito mudo. É esta natureza que, eu temo, vai desaparecer por aqueles lados, dentro em breve. Preparam-se para instalar turbinas eólicas na coluna vertebral da Estrela. Do Malhão à Santinha e S. Tiago, por um lado e pelo outro, ao longo de todo o Corredor de Mouros, este belíssimo vale irá ficar sitiado. Gruas, bulldozers, camiões, aço, alumínio, homens e lixo irão violar este recanto e, no fim, quando todo este ruído acabar, restará sempre o subliminar ruído de dezenas de turbinas eólicas a cortar o vento e, nunca mais as coisas serão como agora, nunca mais teremos as formas lisas da serra a recortarem o horizonte. Dizem que é por causa do aquecimento global, eu acho que é mais uma moda e que bastaria uma moderna central nuclear, com a sua elevada segurança e incomparável eficiência energética, para substituir, de rompante, todo este lixo que estamos a espetar nas colinas das nossas serras.

Mas ao Hermínio isso pouco importa, assoberbado com a sua rotina vê os dias transformarem-se em meses e em anos e, envelhecendo continuará, até ser o último dos pastores, até não restar ninguém naquele vale. Quanto a mim, tenciono voltar sempre, se possível, para reencontrar um velho amigo!

Comentários dos nossos leitores
Paulo Fajardo fajardo.pc@gmail.com
Comentário:
Um retrato muito fiel ao local e ao Hermínio. Gostaria de saber quem foi o autor deste texto? Obrigado.
 

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