Arquivo

Há projeto para a Guarda?

Theatrum Mundi

Pela primeira vez numas eleições autárquicas a minha freguesia é o Lumiar e o meu município Lisboa. Já não voto na Guarda, fui impedido pelas burocracias e concentração de dados do cartão de cidadão. Durante anos consegui preservar este laço de pertença ao mesmo tempo que residia em Lisboa, mas desta vez já não fui à escola Augusto Gil ou à escola de Santa Zita, onde estudei, depositar o voto. Frequentemente fala-se da ética republicana. Para mim, uma parte importante da ética republicana sempre foi regressar à cidade onde cresci para ser eleitor e exercer este direito. Mas o estado moderno tem destas coisas, não passa sem o seu labor concentracionário, o seu afã regulador e padronizador da vida, o controlo dos dados e dos cidadãos. E lá fui eu exercer o meu direito numa freguesia com tantos eleitores como todo o município da Guarda.

Podem já não ser as maratonas dos anos 70 e 80, mas as noites eleitorais continuam a proporcionar interesse e surpresa. Por muito que a abstenção tenha vindo a ganhar terreno, o jogo eleitoral permanece no centro da vida política e a escolha dos representantes locais adquire especial importância na realização do bem comum. É certo que a conjuntura nacional, a política nacional, condiciona a expressão das vontades locais mas acima de tudo é a avaliação do interesse local que preside às escolhas nas eleições autárquicas. Um estudo que faz falta é compreender as variações do voto para a câmara, assembleia municipal e assembleia de freguesia numa mesma eleição. Estas variações, mais significativas do que se possa imaginar, denotam a complexidade da estrutura da escolha eleitoral e a capacidade dos eleitores de diferenciar o que está em causa em cada ato e em cada nível de representação.

E depois há os casos de completa e aparente contradição do voto local com o voto nacional, como aconteceu na Guarda ou em Braga nas últimas eleições. Um prato forte da noite eleitoral foi precisamente o destacar como esses dois bastiões socialistas mudaram de mãos, ao arrepio da derrota eleitoral dos partidos do governo e da indignação face à austeridade crescente. A vitória socialista no município da Guarda resistiu a todo o tipo de vicissitude e tendência nacional desde 1976. Resistiu à degradação da cidade como espaço urbano e como aglutinador e representante do interesse regional. Sou mesmo tentado a dizer que, do ponto de vista democrático, a hegemonia socialista na Guarda foi pouco racional. Apesar dos diferentes rostos que personificaram o projeto socialista, não é difícil conceber que a perpetuação no poder cria e alimenta lógicas que se vão afastando da realização do bem comum.

Cada cidadão tem os seus motivos muito próprios para votar como vota e o exercício de extrapolação da vontade individual para a vontade coletiva não deixa de ser arriscado, até porque os motivos declarados não são sempre os que contam mais ou os que contam de facto. Face ao resultado das últimas autárquicas na Guarda é importante arriscar hipóteses e tentar saber como e porquê perde o poder uma força política hegemónica durante tanto tempo. Para lá da questão mais comum da degenerescência do poder, é legítimo perguntar se, depois de quase 40 anos à frente do município, os socialistas ainda tinham um projeto para a Guarda. Neste contexto, as questiúnculas e divisões internas dos socialistas (que antecederam as eleições) não fizeram mais que agravar as dúvidas e desconfianças dos eleitores e motivaram a vontade de mudar.

Na lógica democrática, a mudança é racional porque os cidadãos utilizam o voto para expressar preferências e visões do bem comum e avaliar os responsáveis pela sua realização de acordo com critérios de eficácia e validade democrática. Passadas as eleições, e já longe das emoções e do frenesim da campanha, é preciso perguntar que projeto tem o novo poder para a cidade e para a região. Mas também é preciso perguntar que plano tem o novo poder para envolver os cidadãos na apropriação desse projeto. O mundo em que vivemos demonstra a importância crescente da política ao nível local e as autarquias têm a obrigação de estimular a participação cidadã a partir de baixo e o envolvimento dos grupos. Em plena liberdade e sem os constrangimentos (que infelizmente se tornaram habituais) dos pequenos feudos e dos interesses pouco transparentes.

Por: Marcos Farias Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply