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Guterres: Tempo de ser voz

O museu Reina Sofía inaugurou há dias uma exposição celebrando os 80 anos de ‘Guernica’, o marcante painel com que Picasso retirou ao esquecimento e guardou para memória de todos o brutal bombardeio da população civil da pequena vila biscaia durante a guerra civil espanhola. A exposição intitula-se “Piedad y terror”, o que faz pensar como são hoje apropriados estes termos para falar de outras bombas, transportadas não por aviões, mas corpos humanos dispostos a fazerem-se explodir na entrada de uma igreja copta, ou entre os bancos de madeira onde os crentes se ajoelham de outra igreja copta.

A violência não é novidade, nunca foi. Talvez nestes 80 anos não tenha passado um único em que Guernica não fosse actual. Mas as nossas responsabilidades maiores começam sempre pelo dia em que vivemos. Não se pode ignorar os atentados no Egipto como não se pode ignorar o uso de armas químicas na Síria. Não se pode ignorar a acção unilateral dos EUA sobre o regime sírio, por ordem de Trump, e também a escalada ao largo da Coreia do Norte. Não se pode ignorar que Bashar Al-Assad não merece qualquer compromisso sem nos humilhar mínimos da decência humana. Não se pode ignorar que Putin sente-se em casa quando o quotidiano das relações internacionais passa a ser a unilateralidade, a imprevisibilidade, a escalada, a retaliação.

Mas, também não se pode ignorar a falta de veemência de um secretário-geral das Nações Unidas que tem de perceber que os apelos à moderação e ao diálogo não servem sempre. É verdade, no tabuleiro das relações internacionais Guterres não pode mover-se em jogadas de ameaça, ofensivas e contra-ofensivas como os outros, mas não é menos verdade que a sua é das peças de que mais se espera uma grande capacidade de persuadir. A persuasão da palavra, dos direitos, da multilateralidade, tem muita força, mas é preciso exercê-la para lá do mero “apelo”. Quem apela não se reconhece verdadeiramente como peça no tabuleiro, mas espetador participante. Não pode ser assim. As críticas começam a surgir de lugares que vivem muito de perto os conflitos. A Amnistia Internacional por exemplo, que se queixa de inação no Iémen e falta de assertividade na questão dos colonatos em Gaza. O tempo não é grato para Guterres, que em 100 escassos dias para se instalar, compor equipas, estabelecer contactos e pôr a imensa estrutura das Nações Unidas a funcionar, vê o tempo do mundo, dos conflitos internacionais acelerar, vê Trump ser eleito e revolver as bases de entendimento anteriores. Mas são precisamente todas estas dificuldades que devem levar Guterres a fazer-se ouvir como voz de importância global.

Por: André Barata

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