«Fiquei sozinha um domingo inteiro. Não telefonei para ninguém e ninguém me telefonou. Estava totalmente só. Fiquei sentada num sofá com o pensamento livre. Mas no decorrer desse dia até a hora de dormir tive umas três vezes um súbito reconhecimento de mim mesma e do mundo que me assombrou e me fez mergulhar em profundezas obscuras de onde saí para uma luz de ouro. Era o encontro do eu com o eu. A solidão é um luxo». Este é apenas um fragmento do livro “Um Sopro de Vida”. Mas não, não será sobre esse livro que escreverei hoje, pois o domingo pede antes o silêncio de “Homens sem Mulheres”, de Haruki Murakami.
As solidões não sabem caber no mundo. São moradas que vivem encolhidas num quarto só seu e, quando estendidas, podem virar desertos imaculados ou garrafas lançadas ao oceano sem qualquer recado. Murakami sempre surgira para mim como esse coleccionador de solidões: um assobio só audível para aqueles que conhecem a dança do vento; ou uma floresta apenas calcorreada pelos pés gigantes dos nómadas. Se essas solidões se tornarem livres em excesso podem transformar-se num Raskólnikov, se nunca ousarem andar descalças submeter-se-ão tal qual o elefante acorrentado de Jorge Bucay. “Homens sem Mulheres” não tem crimes nem castigos, e muito menos elefantes. Tem, sim, Kafka, Beatles, cobras, e um silêncio que me faz querer imaginar como seria o Travis Bickle (em “Taxi Driver”) sem a matança final.
Mas, não, em nenhum dos contos deste caldo solitário podemos avistar esse táxi amarelo. Em vez disso temos o Saab 900, também amarelo, de Kafuku. Kafuku significa “casa afortunada”, porém o seu destino bem cedo fraudara a sua sorte. Desde que a sua filha morreu, com apenas três noites de vida, nunca mais o relacionamento com a sua mulher parecera o mesmo. Só mais tarde, com o falecimento dela e os indícios de um glaucoma é que começa a tentar perceber porque raios a mulher o traíra. Tudo aponta que Kafuku tem um ponto cego no canto direito do olho e, vendo-se incapaz de conduzir o carro, assim como a própria vida, terá de passar a ser guiado por Misaki.
Sugerindo um “Ensaio sobre a Cegueira”, Kafuku procura a verdade, e Misaki, de parcas palavras, transporta a personagem que tantas outras personagens tem de representar. Ator dentro e fora de cena, «numa situação normal, Kafuku sentir-se-ia nervoso pelo facto de se encontrar com outras pessoas, porém, a presença de Misaki não o perturbava. Pelo contrário, parecia grato por ela manter aquele ar indiferente, agindo como se não ouvisse rigorosamente nada». Ao experimentar pela primeira vez o lugar de passageiro, Kafuku pensa, então, ter um ângulo morto que faz com que parte da existência da mulher lhe esteja para sempre vedada.
Agarrada pelo mistério, em “Homens sem Mulheres” não encontrei um Murakami diferente de nenhum outro. Ele não disse nada que eu já não soubesse. Mas é, precisamente, por essa capacidade de nos comunicar verdades que julgávamos remotas que é ainda mais delicioso voltar aos silêncios de domingo.
Melanie Alves
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com