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Fumar

Razão e Região

O ano começou com a polémica acerca do tabaco. Do fumo em locais públicos. E, a acender a fogueira, lá estava o Presidente da ASAE, que até nem é fumador, no Casino do Estoril, agarrado a uma cigarrilha, na passagem do ano. «Crime!», disseram todos os que esperavam por uma boa ocasião para malhar na Agência para a segurança alimentar e económica. António Nunes apanhado a fumar! Ainda por cima num Casino, na passagem de ano, a altas horas da noite, pouco depois de a lei do fumo ter entrado em vigor! Estala a polémica. Acendem-se os ânimos. Fala-se de fascismo higiénico (mas a sujidade é mais democrática do que higiene?). Da fúria regulamentadora da União Europeia e da ASAE como seu braço armado. Discute-se acerca do excesso de intervenção do Estado na esfera individual e privada. Alguns, é certo, levantam-se contra o liberalismo de pacotilha dos arautos do direito aos novos «vícios públicos e privadas virtudes» (gostei do artigo do Pedro Magalhães, no «Público» de Segunda-Feira passada, que os denunciava). Mas a força mediática destes arautos é muito maior. Um ilustre «Senador» (do reino de Lilliput?) até chegava, a propósito da liberdade ameaçada e quase «amordaçada», a interrogar-se sobre se o fascismo não teria já chegado ao poder! Outros, em artigos um pouco mais elegantes, apoiados na baixa do IVA para os «spas», a dizerem que o Governo quer fazer de Portugal um imenso «spa» (mas eu até gosto dos «spas» e o meu sonho é ter um em casa só para mim)…

A leitura dos jornais está a tornar-se fascinante, em Portugal. Porque parece uma disputa de imaginação com esse universo fantástico dos blogues, onde não há limites. A ver quem encontra o soundbyte perfeito. A originalidade das originalidades. Há dias, as televisões – todas elas modelos de serviço público informativo, como se sabe e se vê – noticiavam que, numa aldeia, a tradição ainda é o que era: crianças a fumarem durante dois dias no ano. A tradição aldeã até parecia verdadeiramente subversiva, mesmo revolucionária, em relação ao fascismo higiénico da União Europeia! Amanhã espera-se um artigo de algum outro «senador» lilliputiano em defesa da liberdade de fumo em comunidade, pelo referendo e contra o Tratado de Lisboa. Depois de amanhã espera-se a constituição do Partido dos Fumadores. E outro das Tabaqueiras. Juristas desconhecidos – mesmo não fumadores – aproveitam a confusão para irem à televisão dizer que existem e que lá ficam nos seus escritórios à espera dos caros telespectadores. Aprenderam depressa a lição do nosso Garcia Pereira!

Que diabo! O que está verdadeiramente em causa é a liberdade dos não fumadores, a liberdade de não levarem com baforadas de tabaco quando tomam a bica ao balcão. De não lhes apagarem as beatas no prato da sopa. Uma simples questão de civilização. Fumar? Quem se atreveria a proibir alguém de fumar, numa democracia? Fascismo higiénico? Tenho a certeza de que, enquanto vivermos em democracia, o Dr. António Nunes não virá a minha casa proibir-me de fumar. De resto, nem sequer fumo. O que sei é que para ter gás canalizado em casa tenho que ter uma exaustão do monóxido de carbono que seja regulamentar. Claro, o risco de a casa ir pelos ares é menor. O que está em causa é a liberdade dos outros. Pois claro, a minha termina onde começa a dos outros. Numa base de igualdade, evidentemente. Só que alguns acham que a sua deve terminar lá muito longe, tão longe que, se possível, a dos outros nem sequer se note. Ora isto só é tolerável numa ilha deserta. Não num café.

Eu falo assim, mas fumei durante trinta e cinco anos. Não me incomoda o fumo, desde que não mo soprem em cima ou me apaguem a beata no prato. Mas deixei de fumar porque um dia me convenci que o acto de fumar não tinha grande sentido. Não só. Também já fumava de manhã, coisa que nunca fizera. E, de vez em quando, tossia. E o tabaco era cada vez mais caro. Por isso, depois de regressar de uma das minhas idas a Itália, acabei com o cigarro de vez. Assim. Sem mais nada. Nem sequer com os famosos adesivos ou as consultas médicas. Já lá vão cinco anos e não me sinto nada mal. E, como moro perto do Casino do Estoril, assim sempre resisto melhor à tentação de ir lá fumar um cigarro.

Mas isto são questões do foro pessoal. O que está em causa nesta discussão toda é simplesmente o problema da liberdade dos outros, ou seja, o problema da liberdade visto no interior de uma comunidade e não na óptica da «liberdade negativa», daquela que só vê a liberdade por oposição a qualquer coisa, neste caso o Estado. A liberdade vista na óptica da comunidade implica necessariamente a ideia de responsabilidade e esta também tem a ver com os outros.

Por: João de Almeida Santos

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