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Fructidor

1. Acerca das próximas autárquicas na Guarda sobram as panorâmicas e os vaticínios. Resta a visita guiada destinada a um eleitor-modelo que talvez exista, a deambulação descomprometida por entre candidaturas-modelo que seguramente não existem. Comecemos então o passeio, centrando-nos naquilo que esta campanha tem que as anteriores não tiveram. À primeira vista, ressaltam duas coisas: degradação acentuada da imagem dos partidos políticos, traduzida na afirmação de candidaturas aparentemente independentes, da discrição das referências partidárias, nos vários independentes em listas partidárias e no retorno a uma campanha de “proximidade”, que privilegia a “afectividade” entre os candidatos e os eleitores, enquadrados ou não em instituições de referência; um inexplicável pacto de silêncio (até agora) acerca da gestão desastrosa do último executivo camarário, cujo resultado é um passivo “colossal”, e que envolve dossiers quentes: o fracasso da PLIE, a venda do Hotel Turismo, a gestão de recursos humanos, a total ausência de um projecto na área do turismo, incluindo a criação de uma imagem integrada da cidade, a gestão e valorização do património natural e edificado, sector onde cresce o desleixo e a impunidade. Façamos agora uma pausa. O que é que destoa até ao momento do conjunto? Pois é, a proclamada independência de algumas candidaturas. Centremo-nos no movimento “A Guarda Primeiro”, de Virgílio Bento. Quer o cabeça de lista quer o nº 2 foram candidatos a candidatos rejeitados pelos respectivos partidos. Naturalmente, seriam adversários. Unidos pelo ressentimento, são comparsas. Bento é ainda vereador eleito pelo PS, ainda que, desde Maio, sem pelouros. Percorrendo o mapa eleitoral nacional, a situação não é inédita. Na Guarda tem a desvantagem de ser conhecida com maior acuidade. Esta candidatura nasceu de uma cedência a uma onda cívica empurrada pela urgência de uma alternativa destinada a preencher o vazio criado pela oferta limitada dos partidos. O que cedeu? A “hubris” do herói trágico, aqui a sede de desagravo a clamar pela saciedade. O pavor da persistência de uma subalternidade doravante inaceitável. Se o humilde escriba-guia pudesse dar um conselho a Bento, dir-lhe-ia para esperar quatro anos. Período em que apostaria, fora dos holofotes, tranquila e persistentemente e sem a supervisão de spin doctors, na “proximidade” comunitária que é a imagem forte da sua campanha, na valorização da acção cultural e solidária. Aí sim, ganharia o direito à independência, à robusta respeitabilidade. Depois, caros leitores-viajantes, apostaria forte que teria a Câmara ganha em 2017. Na política, saber esperar é uma virtude sem preço.

Continuemos o percurso. A coligação PSD/CDS, liderada por Álvaro Amaro, anuncia e propõe a ruptura, como lhe compete. Prima pela mobilização de jovens e pessoal político fora dos circuitos do poder. Até aqui, tudo bem. Imperdoável é a escolha do cabeça de lista. Numa atitude de desafio à Lei de Limitação dos Mandatos, a qual, pelo triste espectáculo a que assistimos, os partidos quiseram e não quiseram, votaram e lamentaram ter votado. Mas a lei existe, o seu propósito é claro, carecendo unicamente de uma interpretação autêntica pela AR. Por outro lado, apesar de Amaro ter feito um trabalho notável em Gouveia, conhece mal a realidade local. E na lista aparecem alguns conhecidos transfugas com ambições desmedidas. Ao tomar esta decisão, apesar de dispor de alternativas credíveis, o PSD merece ser penalizado. Sobretudo por aqueles que são seus eleitores naturais. Prossigamos. Paremos agora na candidatura apresentada pelo PS. A encabeçá-la está José Igreja, conhecido causídico e ex-presidente da AM. A escolha do slogan “Da Guarda pela Guarda” não é, obviamente, inocente. Tem uma dupla função: demarcação territorial relativamente à coligação PSD/CDS; demarcação simbólica relativamente ao movimento “A Guarda Primeiro”, na medida em que apela a uma unidade do tipo “cerrar fileiras”. Trata-se de uma candidatura que resulta de vários acertos: consensos precários, equilíbrios estratégicos, alianças improváveis. Mas não será essa a regra, neste desiderato? E mesmo a discrição da génese partidária alguma vez fará esquecer a existência da eficaz máquina partidária do PS no concelho? Globalmente, afigura-se a candidatura mais coesa. Na prática, será ou não capaz de romper com os vícios dos executivos anteriores e apresentar um projecto que contemple devidamente os aspectos atrás focados? Aconselho os meus colegas de percurso guiado que agora termina a estarem atentos a este ponto. Será ele que irá determinar o futuro da Guarda.

2. Na última (re)leitura de “Os Maias” centrei-me menos na intriga romanesca e mais nas personagens de uma comédia de costumes com que Eça nos brinda. Quase todas sobreviveram ao tempo. Continuam a divertir-nos na política, nos jornais, no bafio das sacristias, nos salões diplomáticos, na vida mundana. A beatice, a pelintrice, o provincianismo, o chico-espertismo, a lassidão e a ignorância emperram esta “choldra” como já há 140 anos o faziam. Mas agora estamos mais “prósperos”, temos mais telemóveis do que habitantes e usamos e abusamos das redes sociais. Há um episódio que continua a fascinar-me. É final do livro, a deambulação de Carlos e Ega por uma Lisboa em parte irreconhecível. A cena acaba com a correria atrás do “Americano” na rampa de Santos, afim de chegarem a tempo a um jantar. No meio de tiradas filosóficas em jeito de epílogo, algumas das quais a correria veio desmentir, trocam o seguinte diálogo: Diz Ega: «Falhámos a vida, menino!» Responde Carlos: «Creio que sim… Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se “Vou ser assim, porque a beleza está em ser assim.” E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente».

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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