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Frimário

1.Recentemente, passou na RTP 1 um interessante documentário, preenchido com entrevistas cruzadas a cidadãos estrangeiros que vivem e trabalham em Portugal há algum tempo. As perguntas eram sobre as perplexidades e estranheza experimentadas pelos entrevistados, ao longo da sua adaptação aos costumes nacionais. A origem plural dos intervenientes provocou reacções e graus de tolerância diversos em relação à mesma questão. Ainda assim, notou-se um relativo consenso quanto a temas fortes da nossa maneira de ser: a desconcertante relação com o tempo, a extraordinária capacidade de improvisação, que concorre com a mais irritante displicência, a superprotecção sufocante das famílias em relação às crianças, com os célebres estacionamentos em terceira fila nas entradas das escolas, os inevitáveis intervalos para almoçar, and last but not least, o nível de voz usado por muita gente quando está ao telemóvel, chegando um deles a fazer uma piada sobre a desnecessidade de os portugueses fazerem chamadas a curta distância do destinatário, pois este poderia perfeitamente ouvir o seu interlocutor de viva voz…

2. Com a tomada de posse no novo Governo, o Dr Costa inaugurou uma fórmula inédita de governação em Portugal: a “deputocracia”. Ou seja, um regime de assembleia com um Executivo em permanente campanha eleitoral. Acompanham-no no expediente, dentro do seu partido, os ferristas vascolourencizados, a tralha socratina, alguns jovens turcos cheguevarizados, jarrões da dinastia Soares e companheiros do avental. De fora, conta com a prestimosa ajuda dos gerontes estalinistas reciclados, do grupo de moças bordadeiras, a que alguém injustamente chamou de “esganiçadas”, do “trabalhador” Arménio, que viu cair do céu uma viagem no tempo até 1975, do Dr. Pacheco, verdadeiro mentor da aventura, adepto de artes marciais e comentador televisivo nas horas vagas, de algumas almas crentes, dos tipos porreiros que culpam sempre os outros se a coisa não correr bem, de Rui Tavares, ex futura promessa da política na III República, and last but not least, alguns milhares de entusiastas, muito activos nas redes sociais e em escritos nas casas de banho. Gimme five, bro!

3. Nos últimos tempos, percebi uma coisa que ainda há bem pouco me parecia francamente exagerada. Refiro-me ao facto de a “existência” social, para efeitos de coisas tão aparentemente inócuas, como ser convidado para isto ou aquilo, integrar este ou aquele círculo, ser reconhecido, depende não do mérito, ou do talento, ou de qualidades libertas do subjectivismo, mas da oportunidade, de pertencer ou não ao rebanho, da capacidade de adulação, de abdicar de ter ideias próprias, de afrontar ou não as vacas sagradas.O que funciona verdadeiramente é a troca de favores, a complacência, o politicamente correcto, a arregimentação acrítica. O outro lado da moeda é a criação de barreiras subtis, de listas de favoritos e excluídos. O fenómeno, se já é preocupante no universo privado, torna-se aviltante quando está em causa o interesse e serviço publico. Ora, eu não abdico, agora mais do que nunca, de descrever uma trajectória alheia a essas distorções. Podia ser de outra maneira? Podia, mas não era tão sexy!

4. Ainda sobre a leveza. Ou de como evitar que nos esmague o peso da matéria. Seja através da poesia, ou da ciência, onde o conhecimento do mundo é condição para a dissolução da sua névoa, ou da sua solidez. E se esse mundo é feito de qualidades, formas e atributos que definem as coisas, estas não passam de simples aparições de uma substância comum. Que se for agitada com suficiente intensidade, ou com profunda paixão, se poderá transformar noutra coisa. Um dos atributos da leveza é precisamente a agilidade. E o terreno mais seguro para a exercitar é o humor. Há atributos confiáveis, no que toca a diferenciar as pessoas. Podem ser questões de carácter, anímicas, ou de competências. Mas há um que seguramente faz a diferença: a capacidade de criar e lidar com a ironia. É uma qualidade inata. Pouco tem a ver com o grau de instrução ou de erudição. E diferencia-se de outros traços de personalidade, como ser mais ou menos comunicativo, mais ou menos propenso à exteriorização das emoções, mais ou menos sofisticado. É outra coisa. Que nasce connosco e morre connosco. É o instrumento mais óbvio, de que nos podemos socorrer, para firmar uma dúvida razoável acerca de nós próprios, dos nossos erros, das nossas qualidades, das nossas imperfeições, das nossas virtudes, das nossas fantasias e, sobretudo, das nossas crenças. É uma distância que marcamos em relação às nossas circunstâncias e às nossas representações. Um tributo à modéstia e um antídoto contra a subserviência. E um convite permanente, cerimonioso, para que os outros entrem e saiam do jogo e para que eles próprios façam também o mesmo. Ou seja, suspender a linearidade e a inevitabilidade, não para destruir, mas para criar uma cumplicidade que aproxima, destrói barreiras e torna mais fácil sonhar.

5.Gosto de mulheres com hesitações. Em que o rosto aponta um mistério que o olhar decifra. Como que convidando o mais atento a celebrar essa intersecção onde a matéria sucumbe e pela graça triunfa.

Por: António Godinho Gil

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