1. Algumas declarações de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, têm merecido reacções virulentas por parte da esquerda “mole-dura” e “dura” (usando a terminologia de Pacheco Pereira). Por exemplo, o jesuítico Louçã, ex-futura promessa da política nacional, não esteve com cerimónias, numa intervenção diante das hordas alternativas que pastoreou até há pouco. Segundo ele, a senhora afinal quer reeditar o Movimento Nacional Feminino, no meio de referências avulsas à “caridadezinha” e tal. Foi um momento oratório testicular e agregador! Houve outras intervenções, nomeadamente do líder do PCP e comentadores ligados à esquerda radical, que apontam no mesmo sentido. São momentos únicos para um observador atento perceber até onde vai a desonestidade moral e social de um sector político que se apresenta a si próprio como impoluto. Ora, a esquerda de inspiração marxista sempre olhou para os “humilhados e ofendidos” como os “seus” explorados, os “seus” pobres, os “seus” futuros heróis. Se alguém mata a fome a quem precisa, sem autorização dos oficiantes dos amanhãs cantantes, tal constitui uma afronta. No fundo, a esquerda nunca quis acabar com os pobres, mas ter aí uma reserva, um exército, uma justificação moral, para erigir e pôr em prática um determinado edifício ideológico. Se alguém pratica, de forma directa e sem retórica, uma eficaz redistribuição dos recursos alimentares, é logo encarado com desconfiança. Porque não se submeteu à aprovação da máquina assistencial estatal e dos hierofantes que falam em seu nome. Os que “dão” aos pobres para que os pobres não se esqueçam de quem “deu”. Como se os pobres fossem uma categoria e não rostos concretos, situações reais, muitas vezes incómodas. Como já li algures, Isabel Jonet conseguiu, com êxito, dar um peixe a quem tem fome. A esquerda, só consegue dificultar infinitamente a possibilidade de alcançar à cana.
2. O espectáculo teatral “Guarda: Sopro Vital”, recentemente apresentado no TMG, foi claramente um dos momentos altos da/na Guarda neste ano. Como é sabido, surge no seguimento de produções anteriores e com o mesmo tipo de concepção, estreadas a propósito do Dia da Cidade. Este ano teve como novidade a escolha de um tema que, sendo imaterial, encerra muitas memórias. Sendo uma qualidade, traz consigo inúmeras metáforas. O resultado a que o público teve oportunidade de assistir foi, sem dúvida, proporcional à dimensão do empreendimento, à entrega dos participantes, à eficiência da equipa e à ambição dos criadores. Um exemplo para uma cidade balcanizada que pensa cada vez mais pequeno. Cumprindo a tradição, nenhum dos canais televisivos se dignou dar cobertura ao evento. Compreende-se. Há coisas mais importantes para o “homo videns” a que se pode resumir a vida pública na cidade. A dança dos lugares e sinecuras políticas, e respectivas lealdades, por exemplo. Ou seja, um movimento circular de notáveis e figuras de cera, sempre entusiasmante para o desenvolvimento local. Como manobra de recurso, ainda me lembrei de aconselhar algumas das actrizes a pôr um bigode cénico e distribuir essas imagens pelas televisões! Afinal, um “freak show” nunca defraudou nem defraudará as audiências…
Na parte que me toca, há sempre tempo para ler e reler Norman Mailer, lembrar Mailer, citar Mailer. Por vezes, a cintilação profética dos seus textos é de tal forma intensa que se podem estabelecer com segurança vasos comunicantes no tempo. No romance/crónica de acção “Os Exércitos da Noite” (ed. D. Quixote, 1997), escreve o autor de “Os Nus e os Mortos”, referindo-se a determinados liberais (em determinados contextos, “liberal” é o correspondente americano à nossa esquerda nas suas variantes “mole” e “dura-mole”) na década de 60: “a posição ou o poder na sociedade eram, para o tecnólogo liberal, também um conceito desejável, mas sempre com a possibilidade de ser abandonado em troca de outro melhor. Eram servos daquela máquina social do futuro, na qual todo o conflito humano irracional seria resolvido, negociado todo o conflito de interesses, e a ressonância da natureza seria condensada em frequências que, confortavelmente e consoante o gosto, a pudessem ligar ou desligar. As suas salas de estar pareciam escritórios precisamente por estarem prontas a ser mudadas para a Lua a fim de formarem cidades de Utopia – sendo utopia, pode bem supor-se, o único nome apropriado para modelos-piloto da Utopia em Áreas de Estágio Não Terrestres ecologicamente Subdependentes e Francas, ou seja, planetas mortos, para onde se tenha de mandar comida, mas onde as possibilidades de bons direitos cívicos e engenharia social sejam cem por cento de truz!” Substituam liberal por socialista e aí têm um retrato poderoso…
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia