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Fome (política, carnal, espiritual)

Atmosfera Portátil

Os críticos disseram que se tratava de um dos melhores filmes de 2008. Mas só o vi há dias no TMG. Chama-se “Fome” e foi realizado pelo artista plástico-agora-realizador Steve McQueen (não confundir com o actor do mesmo nome). Já contava com um filme de efeito “murro no estômago”, mas não contava com uma obra que traz qualquer coisa de novo ao cinema. A história é conhecida e vem nas enciclopédias: Bobby Sands, activista do IRA, preso político sem reconhecimento por parte de Margaret Thatcher, inicia em 1980 uma greve de fome como forma de protesto contra o tratamento dado aos prisioneiros da terrível prisão de Maze, reclamando o estatuto de preso político. Bobby Sands é alguém que defende, até às últimas consequências, as suas profundas convicções políticas e ideológicas, e que tem consciência das consequências dos seus actos.

O que “Fome” tem, a meu ver, de prodigioso é o modo como Steve McQueen filma o corpo humano (e por inerência, o espírito humano) nas suas maiores privações e estados de violência. Filma-o sem reservas morais, sem condicionalismos estéticos. Nota-se bem que o olhar de McQueen é o de um artista plástico: nos enquadramentos, nos planos, na montagem, na utilização soberba dos sons e da música (de David Holmes, um ex-DJ), na exploração dos espaços físicos e na gestão do tempo – e neste aspecto é impressionante o diálogo entre Bobby Sands e um padre num plano fixo de mais de 15 minutos. Aliás, este é mesmo o momento em que existe mais diálogo. Durante o resto do filme, os silêncios e os olhares pontuam os momentos de sofrimento e brutal violência vivida pelos prisioneiros. Com Steve McQueen, artista cujo trabalho, na verdade, parte do olhar do mundo à sua volta, o realismo é uma questão de corpos, pele, dejectos e odores da vida na prisão, olhados por uma lupa, mas tão de perto que se torna abstracção e se torna outra coisa. Uma coisa repulsiva, que renega a submissão ideológica. Uma coisa que admite a colisão de corpos, o abuso de seus limites, produzindo uma experiência sensorial tão estonteante – a orgia de violência entre guardas e prisioneiros, cujo próprio corpo é uma arma – que reduz o espectador, atordoado e exausto, a um ponto zero a partir do qual se abre o percurso da reflexão.

“Fome” é um filme de retrata o espírito selvagem e inquietante de alguém que não refuta a sua essência, a sua fé, o seu ideário político em que crê piamente, e por isso é um filme seco, mas de uma secura terrivelmente fascinante, que traduz em imagens o que as palavras nem sempre conseguem revelar. O corpo humano como expiação, que sofre em defesa de um inabalável ideal (e 10 prisioneiros morreram à fome). Os últimos dez minutos de película, nos quais vemos Bobby Sands a definhar, são os mais espantosos e, arrisco, poéticos. Há poesia na forma como o realizador filma os esgares, os olhares e o corpo do prisioneiro, como ele olha para si próprio enquanto jovem, como recorda os momentos em que corria pelo bosque. O actor que dá corpo ao manifesto, Michael Fassbender é impressionante na entrega e na interpretação.

Steve McQueen, por seu lado, mostrou com este seu primeiro filme, ser um realizador com muitíssimo talento e recursos visuais enormes (a prova são os inúmeros prémios que recebeu, um deles em Cannes 2008). Oxalá o futuro o confirme com obras de fôlego tão poderosas quanto este “Fome”.

Por: Victor Afonso

Fome (política, carnal, espiritual)

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