Arquivo

Estado de vida “vegetariano”

Ladrar à Caravana

Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série nas fábricas. Nem propaganda, nem garantias, nem segurança, nunca um animal com esse nome existiu.

Ray Bradbury, Fahrenheit 451

Às vezes levamos umas patadas. Aquele susto valente que o médico nos prega por causa dos maus hábitos alimentares ou excesso de sofá, a iminência de ficar sem trabalho, o desaparecimento de alguém que nos é próximo. Situações, enfim, que nos obrigam a rever a importância das insignificâncias que povoam o nosso quotidiano.

Esta frase, já no fim do livro, constituiu para mim uma dessas patadas. Andamos colectivamente obcecados com a psiquiatrização da vida, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer cai inexoravelmente nas malhas do diagnóstico psiquiátrico. Até o pseudo psiquiatra de Carlos Silvino lhe atribuiu uma depressão mais uma amnésia lacunar com um bónus de “estado de vida vegetariano” (sic). Enfim, este diagnóstico de depressão colectiva seria atenuado se encarássemos a existência com o espanto e a urgência que a frase ali em cima recomenda. Estaríamos vivos se não vivêssemos apavorados com a imagem passada pelas nossas roupas-sem-marca ou pelo terror de um meteoro que nos acerte em cheio na moleirinha. A única garantia que a vida nos dá é a de estarmos vivos. É de aproveitar esta que temos de certeza, do que adiar à espera da outra, que ninguém, por muita fé que tenha, sabe se existe mesmo. E a vida faz-se de coisas simples. Cito, sem autorização, o blog do escritor Possidónio Cachapa, recém-chegado de São Tomé:

Em S.Tomé ainda há mãos estendidas e corações abertos. As pessoas vivem com muito pouco. A maioria colhe os frutos das árvores, da terra ou do mar. Pescadores de pé, sobre as pirogas acenam para a terra onde as mulheres alegres como crianças negoceiam o preço do concon (não sei se se escreve assim) ou do peixe-fumo.

Quando andamos pelos buracos em que se converteram as estradas da ilha, só ouvimos uma saudação: “Amigo!”.

Em S.Tomé percebemos como a Europa e o “mundo civilizado” caminha para o abismo. Em S.Tomé percebemos que uma praia banhada por ondas mansas e ladeada de coqueiros e árvores de fruta-pão é muito mais do que um postal: é um post-it na porta do nosso frigorífico urbano a lembrar-nos o que é essencial e o que é acessório. (…) Em salas cheias de alunos africanos relembrei o que é a curiosidade e o interesse. E também que todos os miúdos jovens escrevem poemas, protestam contra a autoridade e sentem um interesse galopante pelas histórias românticas.

Foi bom falar com gente nova que não olha enfastiada para nós como se dissesse: “dá-me tudo, porque eu tenho direito a tudo”. Em África ainda se entende o valor da aprendizagem.

Para sairmos desta depressão, mais do que de Prozac, precisamos mesmo é de voltar a dar valor ao simples facto de estarmos vivos. E isso aprende-se.

(Mais de Possidónio Cachapa em http://www.prazer_inculto.blogspot.com

)

Por: Jorge Bacelar

Sobre o autor

Leave a Reply