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Escolas, Falácias, Ressacas e coisas que tais

Crónica Política

A decisão do atual governo de terminar progressivamente os contratos de associação com os colégios privados em locais aonde exista oferta pública suficiente deu início a uma demagógica campanha sobre o papel que tais instituições representam para o atual sistema de ensino. Para se compreender adequadamente esta reação convém recuar às origens da opaca relação entre o Estado e os colégios.

A grande maioria dos colégios surgiu da necessidade de colmatar a ausência de oferta pública para a massificação escolar que se produziu após o 25 de Abril. Faltavam escolas públicas e houve necessidade de celebrar contratos de associação com escolas privadas, possibilitando a frequência destes estabelecimentos em regime de gratuitidade.

De forma simplificada, pode dizer-se que estes contratos foram as primeiras parcerias público-privadas (PPP’s) da nossa democracia. O problema foi, tal como nas PPP’s mais recentes, por exemplo, as rodoviárias ou da Saúde, a velhinha promiscuidade político-partidária. Da mesma forma que se construíram autoestradas que não eram precisas ou hospitais atrás de cada pinheiro, apenas para saciar o apetite dos lóbis das obras públicas ou certos caciques autárquicos, a subsidiodependência dos colégios foi-se alargando com o falacioso argumento da sobrelotação das escolas públicas e da qualidade.

Numa primeira fase, o Estado, cada vez mais refém das influências corporativas e de interesses económicos particulares, limitou-se a não investir aquilo que devia na escola pública, confirmando a profecia. Posteriormente, à medida que a demografia foi desmanchando a ficção subjacente a todo este negócio, assistiu-se a um claro desinvestimento na escola pública, embrulhado em campanhas de descrédito de classes profissionais inteiras. Passou a ser chique dizer mal da escola pública e dos professores.

O problema é que o que se seguiu foi um pouco aquilo que sucedeu nas PPP’s das autoestradas. Quando faltam veículos, as portagens assumem valores exorbitantes e desajustados ao nosso nível de vida. No caso dos colégios, as portagens eram os cada vez maiores subsídios que recebiam do erário público, justificados por uma invocada qualidade materializada em transportes em autocarros de luxo, piscinas, campos de ténis e até equitação! Pode dizer-se que o privado cavalgou literalmente os bolsos do Estado.

Ora, a função do Estado não é essa. Consiste em fornecer a todos um ensino público de qualidade. E se porventura isso nem sempre acontece, não é drenando recursos para o vizinho do lado que se corrige o problema. É fazendo exatamente o contrário, mas bem.

Da mesma forma que às PPP’s da Saúde interessam muito mais as cataratas, as próteses da anca ou as análises a quilo, e quase nada os cancros, Alzheimers ou AVC’s, os colégios passavam muito bem sem os alunos com necessidades educativas especiais. Talvez os aceitassem, mas apenas se lhes pagassem bem mais do que a escola pública tinha de gastar para os acolher. Não me choca esta perspetiva comercialista da coisa, pois o privado e o lucro são afinal as fundações do sistema. Mas choca-me a hipocrisia daqueles que dizem mal de tudo o que é público, exceto do dinheiro que venha de lá…

O desvario histérico desta gente é a prova de que há coisas que nunca mudam. A incoerência é a mãe de todas as hipocrisias. A Constituição não garante o livre direito de escolha a qualquer preço. Mas em contrapartida obriga o Estado a investir, antes de mais, num ensino público de qualidade. E se o dinheiro não chega para tudo e o número de alunos cai a pique, adivinhem para onde vai a minha escolha.

Só nos faltava um dia destes os contratantes das PPP’s rodoviárias quererem também obrigar o Estado a pagar-lhes pelos veículos que não passam mas que eles gostavam que passassem. Ou antes, sabemos que afinal já é assim. Mas como um mau exemplo não serve de exemplo nenhum, é sempre bom que não se estenda para onde não deve. É que a solução para o vício não é a má habituação e mais do mesmo. É a abstinência. E às vezes, para a impor, é preciso forçá-la. Por muita ressaca que dê.

Por: Jorge Noutel

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