Morreu num sábado chuvoso de Verão, dia em que os astrónomos anunciaram a descoberta de um grande vazio no Universo, que demora um bilião de anos-luz a atravessar. Se a morte não for esse vazio, a palavra que a diz “é em cada um de nós o nó do mistério mais absoluto”, como um dia tinha afirmado. Morreu, depois de ter percorrido os passos de uma doença a que ele, um epicurista, fez frente estoicamente, com coragem digna e fervor pela vida. Os antigos não desprezavam a prova da doença e do sofrimento para avaliarem um homem. Tinham razão! Eu estive com ele, e a certeza com que me disse que ia vencer era uma aliança com a alegria que me contagiou e comoveu.
Eduardo Prado Coelho, o EPC, foi, ou quis-se, durante décadas, o São Pedro do nosso “céu cultural”: nada nem ninguém da cultura passava sem passar por ele. Como professor, ensaísta, crítico, comissário, conselheiro, cronista dispôs de um grande poder cultural, que defendia. Gostava de ser o primeiro: o primeiro a escrever sobre um autor, um livro, um filme; o primeiro a falar de um conceito, uma teoria, uma corrente; o primeiro a revelar um escritor, um artista plástico, um músico; o primeiro a falar de um acontecimento, um objecto, uma tecnologia; o primeiro a dar notícia de uma performance, uma moda, um estilo. Em tudo, ia a todas, para não falhar nenhuma. Foi o Google “avant la lettre”. Esta volúpia, que fez dele um grande divulgador, não o impediu de cair, algumas vezes, nas armadilhas que o tempo põe sob os pés que correm a ultrapassá-lo. E, para falar de uma obra de arte, a informação e o aparelho conceptual eram-lhe mais úteis do que o instinto, o gosto ou o ouvido. Contribuiu, e muito, para que o nosso país se tornasse mais contemporâneo e cosmopolita. Se o Portugal reaccionário, moralista, hipócrita, machista, homófobo está mais recuado, o seu nome tem direito a constar entre aqueles que cooperaram numa derrota, que é uma vitória da liberdade. A crónica que, durante dez anos, escreveu, diariamente, no “Público” foi um jogo que ganhou e no qual mostrou as cartas que tinha e a diversidade e sucessão dos seus saberes, interesses e humores. Gostava de comunicar, de argumentar, de citar, de descobrir, de revelar, de provocar. Gostava da polémica – e algumas fizeram história. A sua escrita, com o tempo e a variação, ganhou maior intimidade com a luz e com as sombras.
EPC foi, à sua maneira e à nossa, um “mandarim” (Beauvoir), melhor, um “samurai” (Kristeva) – e tirava disso grande prazer. Adorava a celebridade. Gostava do poder: do seu e do dos outros. Adorava ser conselheiro dos príncipes. As suas atitudes políticas não foram isentas de ambiguidades e mal-entendidos, que ele justificava com invulgar astúcia. Os seus juízos perdiam, às vezes, clareza, no labirinto da uma subtil teia de relações e influências. EPC era inteligente, culto, curioso, irónico, narcisista, generoso, ávido, lúdico, gentil, pontual, sedutor, irritante, perverso, ingénuo, livre. Talvez lhe tenha faltado apenas originalidade e aquela forma de esquecimento de si a que alguns, usando uma antiga, bela e incerta palavra, chamam grandeza.
Por: José Manuel dos Santos