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Em democracia há limites à liberdade

Rimo-nos, há algumas semanas, com os Gatos Fedorentos quando, vestidos de Mocidade Portuguesa, saudavam, alegremente, a continuação do status quo fascista. O grupo reavivou a memória dos tempos salazaristas, conseguindo conferir um pendor jocoso à tragédia perpetrada pelo regime a que devemos o bem conhecido atraso sócio-económico de 30 ou 40 anos em relação à restante Europa. A distância que se instalou entre o presente e esse passado conferiu a folga emocional que nos permitiu, naquela noite, rir de uma tragédia. Mas o que não pertence ao passado, e que constituiu a base do gag, é a votação que fez com que a figura de Salazar tenha saído vitoriosa do concurso que supostamente serviu para apurar o maior português de sempre.

Alguma imprensa estrangeira comentou que, ao ter sido Salazar o mais votado, a democracia portuguesa revelou sinais de debilidade, de fraqueza. Uma democracia forte é aquela onde as pessoas firmemente acreditam na imprescindibilidade do confronto de ideias para escolher o seu caminho. O regime democrático opõe-se, pois, ao regime ditatorial, que implica uma vivência em sociedade em que as pessoas abdicam de fazer prevalecer a sua opinião em favor da opinião de uma única pessoa, aquela que dita o modo como os restantes têm de viver. Em troca, o grupo de apoiantes obtém favores, ou seja, vive em situação de privilégio, enquanto os restantes são obrigados a contentar-se com as sobras depois de uma primeira escolha.

Ao ganhar Salazar, Portugal votou contra a democracia. Claro que não se tratou de um referendo de tipo governamental, com efeitos vinculativos à decisão obtida, e daí que muita gente não tivesse considerado esta eleição mediática merecedora da sua intervenção activa. Mas, apesar de não ter tido um cariz nacional (houve cerca de 30 mil participantes), e valendo apenas o que valia, da votação resultou a imagem de um Portugal a posicionar-se, democraticamente, contra a democracia. Daqui a legítima dedução daquela imprensa sobre a fraqueza da democracia portuguesa.

Qualquer sociedade, para sobreviver, tem de saber defender os princípios por que se rege. Uma sociedade que escolhe reger-se por um regime democrático tem de proteger-se contra aqueles que são inimigos desse tipo de sociedade. Daí que na nossa sociedade democrática se persigam os terroristas para impedir as suas actividades. Em Inglaterra, onde a democracia tem uma tradição mais longa do que em qualquer outro país ocidental, não se dá tempo de antena a nenhuma tendência política que não respeite os princípios democráticos. Por exemplo, as barbaridades racistas e xenófobas proferidas por Le Pen não são transmitidas nos canais televisivos britânicos, quer estejam no poder Trabalhistas, quer Conservadores. Daí, também, que em Inglaterra se tenham proibido discursos religiosos que incentivem o fundamentalismo islâmico. Em democracia, liberdade significa poder escolher fazer tudo excepto atentar contra os princípios em que essa democracia assenta. A liberdade democrática pode ser de todos excepto dos que atentam contra ela – muito simplesmente porque estes a usam mas, se pudessem, não a deixariam usar aos outros. Foi assim com Salazar – ele não deixou ninguém discutir a possibilidade de sermos livres; opôs-se sempre à pluralidade de opiniões. Em Inglaterra, Salazar estaria, pura e simplesmente, fora de concurso.

Mas em Portugal, é como se nada tivesse importância, nem mesmo o mais aberrante. Não seria melhor repensarmos os tais “brandos costumes”? Não seria melhor considerarmos se não estamos a ser apenas uns frouxos? E não será essa frouxidão um mero estratagema para salvaguardar a altura em que, quando prevaricarmos, não sejam demasiado rigorosos connosco? Ser bonzinho, pode compensar – alguns. E o bem de todos, quem pugna por ele, se não formos nós todos?

Por: Luísa Queiroz de Campos

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