É legítimo protestar contra uma diminuição drástica na dotação financeira do Plano de Investimentos da Administração Central para o distrito da Guarda? É uma obrigação. É válido assumir sentimentos de “descontentamento e revolta” perante a “injustiça flagrante” de ficar com uma fatia “dramática” do Orçamento de Estado? É um dever. É aceitável zurzir o Governo, os representantes locais do Estado e os deputados da situação por “injustiça”, “má-fé”, “camuflagem da vergonha dos números”, “seguidismo em relação ao poder central”, “incompetência” e “ausência de poder reivindicativo”? É um direito. Que o diga Ana Manso. Foi a deputada do PSD quem afirmou isto e muito mais – com alguma razão, reconheça-se – contra o PIDDAC de 2001. Estava o PS no Governo e tudo quanto se propunha investir no distrito da Guarda não passava de 92 milhões e meio de euros. Menos oito milhões, portanto, que no ano anterior. Ana Manso e Álvaro Amaro, então deputados da oposição, acusavam os socialistas de “atirar areia para os olhos das pessoas” e vergastavam o governador civil (que era, na altura, Fernando Cabral) e os deputados do PS pelo “escândalo” de terem deixado o distrito ficar em penúltimo na distribuição do «bolo» – bastante atrás de Castelo Branco e de Bragança e, claro, a muitos milhões de distância de Viseu. Passado um ano, protestaram com ainda maior vigor. Eram ambos candidatos a presidentes de câmaras (Ana Manso na Guarda e Álvaro Amaro em Gouveia) e diziam sobre o PIDDAC para 2002, o Governo, os deputados e os boys o que Maomé não disse sobre o toucinho. Apesar de o distrito ter subido, nesse ano, de penúltimo para antepenúltimo na relação dos investimentos a haver por conta da Administração Central (com um simbólico aumento de dois milhões e meio de euros), continuavam cobertos de razão.
Nisto dá-se a derrocada do PS e a ascensão do PSD ao poder. Ana Manso, agora deputada pela maioria, ascende ao estatuto de presumível – e provavelmente não mais do que isso: presumível – eminência parda, fazendo crer que pode, quer, manda e domina. Mas ao cidadão comum basta que ela consiga ser coerente consigo própria e persuasiva com o novo poder, para que a justiça que antes clamou para o distrito seja por fim reposta.
E o que temos? Logo de começo, cinco milhões de euros menos no PIDDAC para o corrente ano e o retorno a penúltimo na tabela. Com o previsível pretexto de, por ser o primeiro orçamento da era pós-PS, ainda importar efeitos do desvario.
E agora? Agora é o descrédito absoluto. Para 2004 este governo consegue destinar ao distrito da Guarda o pior orçamento dos últimos dez anos. É proposta uma redução líquida de quinze milhões euros, o que representa um corte de quase o triplo daquilo que a ministra das Finanças tinha fixado como meta de restrição ao investimento público.
Com a excepção de Portalegre, somos o distrito mais penalizado do eixo da interioridade: em comparação, Bragança recebe mais 37 milhões de euros; Vila Real mais 34 milhões; Viseu mais 53 milhões; Castelo Branco mais 23 milhões; Évora mais 24 milhões; e Beja mais 82 milhões. E apenas três destes distritos – Vila Real, Viseu e Castelo Branco – têm maior população que o da Guarda (sendo pacífico que esse é um critério ponderável).
O que nos faltou? O de sempre: liderança, influência, poder, reivindicação, respeito. Ana Manso pode engolir tudo quanto proferiu há dois anos e há três: afinal fez pior. Por isso ainda não teve a coragem de dar a cara: não há como explicar o inexplicável. Não é da conjuntura, certamente. E também não é, decididamente, culpa dos que estiveram antes: há cem anos já D. Carlos declarava que “esta choldra é ingovernável” e houve muitos governos depois disso. Se não tem uma justificação razoável, o melhor é a líder do PSD remeter-se ao silêncio e à patente ineficácia. E os dirigentes do PS, que esta semana vieram classificar de “humilhante” o orçamento, têm razão mas também é recomendável que não façam ondas. Se há acusação recíproca em que os dois partidos estão rigorosamente certos é a de que, por junto, o que fizeram por este distrito foi absolutamente nada ou pouco mais.
Só há, assim de repente, uma maneira de ambas as partes salvarem a honra: faltando vinte dias para a aprovação do orçamento e sendo quatro os deputados pelo distrito, vão a tempo de reclamar, exigir, negociar ou mesmo extorquir coisa que se veja. Em função daquilo que o orçamento reservar para o distrito na derradeira versão, cada um votará em consciência – mandando às malvas a disciplina partidária. Pode dar-se o caso de os deputados do PS votarem a favor da proposta do Governo, se ela for justa para os interesses da Guarda; como podem os deputados do PSD votar contra, a manter-se tal como foi apresentada.
No limite, se ninguém desse importância à tentativa (porque a realidade aritmética é que quatro votos não chumbam o orçamento), sobrar-lhes-ia uma saída radical e potencialmente mediática: fazer greve de fome, num corredor do Parlamento, até que houvesse o compromisso de aumentar o investimento público no distrito.
Já foi experimentado uma vez – em nome de um queijo – e deu resultados extraordinários. É certo que se tratou de uma representação burlesca do sistema político. Mas, seja dita a verdade, ainda ninguém inventou melhor. Irão os deputados pela Guarda surpreender-nos?
Por: Rui Isidro