O Carnaval ou, como seria mais apropriado chamar-lhe pelas nossas bandas, o Entrudo, é, por definição, um tempo de folias e de irreverências várias. Em Portugal e não só, o Entrudo é tempo de folguedos e de comemoração do renascer da natureza após a letargia do inverno. É também o tempo de expurgar pecados velhos através de, entre muitos e diversificados aspetos, uma crítica social, bem-humorada muitas vezes, mas, não raro, mordaz e corrosiva seja para o indivíduo enquanto tal, seja para um grupo ou até para o todo social. Mas, como bem reza o adagiário popular “é Carnaval, ninguém leva a mal”.
Por estas bandas do interior, isoladas durante séculos no espaço e no tempo, manteve-se nesta época do ano o “Julgamento e Morte do Galo do Entrudo”. Tive, há cerca de três décadas atrás, a oportunidade de assistir, em anos consecutivos, ao realizar desta tradição em Pousade, aldeia do concelho da Guarda. Aliás, a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda publicou em 1984 uma pequena brochura que retrata o fenómeno que invariavelmente atingia o seu clímax após a leitura da sentença e a morte do galináceo num, tão disputado quanto hilariante, jogo do galo.
Bem sei que se mudam os tempos e as vontades os acompanham e, hoje por hoje, seria impensável enterrar o coitado do galo à espera que jogador mais certeiro ou em hora de sorte lhe acertasse na crista. Bem sei que as tradições apenas chegaram até nós porque acompanharam os tempos e evoluíram. Bem sei que, nos tempos que correm, se torna imprescindível que atividades que aconteciam espontaneamente sejam organizadas por entidades que, à partida, lhes eram estranhas sob risco de serem devoradas pelos apetites vorazes do progresso.
Este ano, mais precisamente a sete do corrente mês, tive oportunidade de assistir a mais uma edição do Julgamento do Galo. A palavra “Morte” foi amputada ao evento certamente para não ferir suscetibilidades que, em boa verdade, me parece não existirem. Até porque a morte é aqui meramente simbólica e, além do mais, o galo continua, simbolicamente repito, a ser morto pelo fogo purificador.
Ao longo do cortejo organizado foi evidente (salvaguardando um ou outro caso quase sempre de âmbito nacional) uma certa parcimónia na crítica o que em nada condiz com a tradição desta época.
Depois, já naquela que para nós, guardenses, continua a ser a Praça Velha, preparava-se o espetáculo final. Muito colorido, muita animação, muito público, que o S. Pedro também quis juntar-se à festa e ser folião, um galo de dimensão imponente, a coisa prometia… Iniciado o testamento acho que até o galo arrebitou a crista parecendo não querer acreditar. É que para ele, useiro e vezeiro nestas andanças, o testamento deveria estar pejado de, em linguagem galinácea, umas valentes bicadas distribuídas em todas as direções. Mas não. Desta vez não. Desta vez as autoridades, presente ou ausentes, podiam estar descansadas. Quem sabe teria sido mais uma vez a crise a levar a que se fosse tão poupadinho…
E pronto!… Visto um embrulho tão colorido, abre-se e…
Não sei porquê lembrei-me de certo dia em que fui comprar umas belas laranjas. Eram luzidias, grandes e, como os olhos também comem, comprei. Chegado a casa, foi o bom e o bonito. Tirando a casca, o interior… nada que aprouvesse a um mortal.
Como diria o televisivo diácono Remédios “não havia nexessidade…” até porque é Carnaval, ninguém leva a mal.
Por: Norberto Gonçalves