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E agora José?

Neste artigo recuperei o título do livro de um dos mais versáteis e completos escritores contemporâneos portugueses, infelizmente muito esquecido, José Cardoso Pires (1925-1998), um homem do Peso, nas cercanias da Covilhã.

Comecei o ano muito mal porque perdi um amigo, um bom amigo e então quebrou-se uma cumplicidade de mais de 40 anos.

Recentemente, este amigo visitou-me e, juntos, recordamos o entusiasmo que colocámos naquele distante ano de 1975, quando nos enquadrámos nas campanhas de dinamização cultural do MFA, na Guarda-Nordeste, onde o nosso voluntarismo e espírito solidário acabou vilipendiado por gente de má catadura, ungidos por agulhetas de água-benta e transfundidos em bombistas de verve que expelia ódio, num momento em que o país ainda vivia a ternura de um 25 de Abril de 1974 nunca esquecido.

Nesse tempo de utopias, ilusões, devaneios, sobrava-nos a imensa vontade de mudar a vida de muitos, que, como diria um poeta angolano, «merecemos o nosso bocado de pão».

Fomos colegas do liceu e no dia 26 de Abril de 1974 lá estávamos à porta da delegação de Coimbra da PIDE-DGS, no cerco que encheu de gente a rua fronteira para que não escapasse ninguém. Partilhámos a alegria de um 1º de Maio, onde, como milhares de pessoas, percorremos as ruas de uma cidade que passou de cinzenta a uma miríade de cores onde os cravos vermelhos eram a cor dominante entre palavras de ordem e canções em tempos em que coletivamente eram ébrios de liberdade.

Cantávamos as músicas que emergiam num tempo novo, também as que ouvíamos sem poder cantar de um outro tempo, que queríamos ver desaparecer e fomo-nos enquadrando de forma militante na atividade política para um combate que promovesse o futuro o mais depressa possível.

Exímio jogador de futebol, que uma arreliadora lesão do menisco impediu de continuar a conciliar o curso de Direito com a prática desportiva de competição, levou-o a abraçar com entusiasmo o teatro e o TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra) ganhou um protagonista de eleição, quer como ator quer como encenador.

Houve alguém que o chamou muito apropriadamente um “calmeirão de afetos” porque, na verdade, conseguia juntar à sua volta gente de muitos quadrantes ideológicos, da mais diversa proveniência social, de divergências culturais e credos e com todos ia mantendo uma grande cordialidade e retribuía a empatia que granjeava.

Foi sempre forte nas suas convicções políticas e apesar de, profissionalmente, ser Procurador do Ministério Público nunca escondeu a sua militância no PCP, e também jamais tergiversou quando era necessário defender com coerência a causa que abraçou quando iniciou a sua caminhada pela magistratura portuguesa.

Durante este percurso naturalmente que cada um foi para seu lado, mas nunca deixámos de nos encontrar e acima de tudo fazer acontecer oportunidades para “juntar a malta”, e fazíamo-lo normalmente por ocasião do 25 de Abril onde mobilizava todos os que fizeram parte dessa geração da utopia, de um tempo em que o muito do que se sonhou se revelou um pesadelo continuado.

Da “Disparada”, do Jair Rodrigues, ao “Silvye”, do Duo Ouro Negro, passando por Zeca, Adriano, Ary, Adamo, Ferrat, etc. eram noites de permanente cantoria e alegria nos sítios mais inverosímeis desde uma decrépita “Clepsidra”, em Coimbra, a um qualquer salão em Vale de Coelha, num lagar de Vale de Madeira, na Festa do Avante, num bar em Leça ou num celeiro na Torre Bela.

Morreu com este amigo uma parte de muitos de nós. Ficámos irremediavelmente mais pobres porque o perdemos, e por muitas palavras que tentemos arranjar para nos consolar uns aos outros a sua recente ausência tem sido difícil de digerir.

Seu nome José, de apelido Romão, nascido em 1955 na freguesia de Almedina em Coimbra, um verdadeiro “Calmeirão de Afetos”!

Perguntarão porque escrevi isto se o José Romão não era da Guarda, nem teria nada a ver com isto. Tinha que escrever o artigo e ainda estou num período de catarse e achei que talvez fosse bom exprimirmos emoções e fragilidades na hora em que morre quem nos é chegado. A despropósito dirão alguns, mas paciência, quem escreve sou eu e tenho o pleno direito à lamechice!

Por: Fernando Pereira

Comentários dos nossos leitores
Vera Matos vera.matos2009@gmail.com
Comentário:
Como é bom lembrar e reviver amizades sinceras, solidárias!! E tu sabes fazê-lo com emoção e verdade. Um abraço,amigo.
 

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