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Do quintal à aldeia

Tresler

1.Tenho admiração (verdadeira) por quem dedica o tempo à terra mesmo quando ela dá pouco ao seu tratador ou não rende tanto quanto a expectativa fazia prever. Sim, é verdade, fazer pequena agricultura funciona quase sempre como o suplemento de outros rendimentos, mas a atração pela terra (que não me bafejou para já) sempre me pareceu algo de sagrado. Regar sistematicamente, cultivar ainda como os nossos pais cultivaram, esperar pouco da colheita mas comer “do que é nosso”, aceito que seja prazer superior. Mesmo quando a terra é madrasta – no fundo não foi culpa dela.

Quando se fala de agricultura, fala-se de… aldeia. Os quintais das vivendas citadinas trazem o cheiro das origens aos aldeões que vieram conquistar as cidades e que muitas vezes cultivam para pagar o preço do abandono da aldeia. Uma memória que é um remorso. E quando a fuga da aldeia se deu e se foi à descoberta do mundo e da independência económica (encontrada), olhar para trás algumas dezenas de anos depois pode ser reconfortante. Também quase sempre transfigurador do que se viveu, sobretudo se recordamos a infância e adolescência, como se disséssemos “Tudo era bom naquela altura”. E não era.

2.Vem isto a propósito da leitura recente da narrativa de cariz autobiográfico “Ernestina”, de J. Rentes de Carvalho (JRC), que se lê num ai. É ligeiro como o são as autobiografias, escrita de crónica, recordação e emoção em traços largos e adesão fácil, com uma escrita plástica e ágil. No centro da história surge o Porto e também Estevais, aldeia de Trás-os-Montes, aldeia dos avós e da mãe de JRC (“digamos assim”, porque tudo apenas “aponta” para JRC). E como é esta aldeia? Na recordação a terra dos avós é a aldeia ideal, sob a luz das férias que o autor aí passava nos anos 30 do século passado. E as pessoas como são? Os pais, de vida urbana, como que são “assassinados” pelo narrador e representam os clichês da família da altura: o pai bêbedo e devasso, sem linha de vida segura, mas a conseguir por cunha o emprego público de guarda, a mãe, dona de casa, instável e neurótica, berrona e sem rumo. Os avós quase santificados, com as fêmeas a procriar e os machos a sustentar a prole e um destino de lavrar a terra a que não podem escapar. Morre o avô da aldeia e, diante da incapacidade do genro (de criação urbana) de lavrar as terras com dignidade e assegurar a continuação da lida agrícola, arranja-se um ganhão que trabalha bem e que passa a ser o braço direito da viúva. Para calar a má-língua do povinho e do senhor padre, que veem o ganhão portas adentro no dia a dia, o ganhão aceita casar com a viúva. Esta coloca no entanto uma condição, imediatamente aceite: cada um dorme na sua caminha, sem misturas, para não ofender o falecido. E é este avô “castrado” que se torna a pessoa mais humana de Estevais: trabalha, não se queixa do destino, vive na paz de Deus, substitui sem problemas o avô verdadeiro, é o ídolo do neto. Já o pai do “autor”, embora pelo contrário fosse um inútil, tinha tido um destino semelhante ao ver-se de repente “empurrado” para a prima direita para ver se lhe mudavam a vida de devasso.

Quando um escritor encara a hipótese de escrever a sua autobiografia, creio que se interrogará logo sobre a mancha de subjetividade que vai acrescentar aos factos relatados. Quando a subjetividade se cruza com a família que estima, vai ser difícil apontar os defeitos, vai ser tentador apagar ou disfarçar. Mas qualquer leitor perdoa a santificação dos pais, que nos geraram e de modo geral nos deram o máximo que podiam. Quando o quadro pintado é pelo contrário crítico e destrutivo contra os pais, qualquer coisa se rompe no leitor. O quê? Isto? Como é possível pelo menos não guardar esse pedaço de intimidade em privado? E as reações dos familiares não interessam? Já não seria a primeira autobiografia a revoltar familiares (Maria Filomena Mónica conseguiu-o também há anos atrás em obra declaradamente autobiográfica). Ora, ao “assassinar” assim os pais, afirmados como inúteis e falhados, não estarão estes a virar-se na cova e os familiares a ruminar vinganças? Haverá o direito de pintar os pais dessa maneira crua, mesmo quando eles tenham sido objetivamente (subjetivamente) uns crápulas execráveis?

(“Ernestina”, de J. Rentes de Carvalho)

Por: Joaquim Igreja

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