Está na moda um tipo de discurso público que aborda o fenómeno da pobreza, e dos pobres, de forma leviana, baseado em chavões, que defendem um certo “modo de vida”, ou até de valores, largamente aceites pela sociedade portuguesa. É o discurso da “responsabilidade individual”, do “valor do trabalho”, da “poupança e austeridade” e contra o “despesismo e a luxúria”. E o foco deste discurso são as classes mais desfavorecidas, com poder de compra mais baixo, menores qualificações, pior acesso à saúde, educação, habitação e poucas possibilidades reais de mobilidade social ascendente.
São estes os recetores dos RSI, subsídio de desemprego, abonos de família, e outras formas de apoio social. Aqueles a quem o Estado outrora, reconhecendo a impossibilidade dos mercados em garantirem a sua subsistência, quanto mais uma existência digna, reconheceu ser sua responsabilidade, segundo a Constituição, providenciar um conjunto mínimo de mecanismos de assistência. Tal facto não impede, no entanto, a existência de exageros, situações flagrantes de abuso ou injustiças.
(…) Preocupante é a possibilidade da obrigatoriedade, aos recetores do subsídio de desemprego ou RSI, de virem a ter de trabalhar, independentemente das funções a exercer, em IPSS’s, serviços públicos ou outros, do Estado ou de privados. Se tal for implementado, assistir-se-á a uma fratura do tecido social entre aqueles que detêm um trabalho segundo os parâmetros legais (que ainda defendem a dignidade humana) e aqueles que, para sobreviverem, são assalariados a preço de desconto, verdadeira mão-de-obra socialmente desvalorizada, obrigada a trabalhar em troca de um subsidio, sem direitos, a soldo daqueles que, havendo trabalho a fazer, preferem recorrer à força produtiva através de mecanismos eticamente inaceitáveis.
Quem propõe algo assim ignora as múltiplas dimensões do trabalho. O trabalho não é apenas uma actividade produtiva, base de todo o valor criado. O trabalho é, através da sua remuneração, o garante da dignidade humana, da realização pessoal profissional, e a fonte da existência de serviços públicos, que não são mais do que o próprio Estado.
Esta medida revela algo interessante: existe trabalho a ser feito em Portugal; mas, nem o Estado nem o sector privado (entre este as IPSS’s) estão dispostos a dar resposta a esta necessidade através da contratação, segundo os preceitos legais, de trabalhadores. Esta medida conduzirá necessariamente à degradação dos custos de trabalho, visto que o Estado, alguns particulares, e progressivamente todo o sector privado, irão recorrer a este mecanismo para colmatar as suas necessidades de mão-de-obra: o mesmo se verificou com os recibos verdes. (…)
Infelizmente este tipo de discursos, e este tipo de medidas, apenas desvia a opinião pública do debate acerca de outros temas importantes, como o aumento crescente do custo de vida, o aumento dos impostos sobre o trabalho e o consumo (não existindo aumentos sobre as mais-valias ou lucros das empresas), e ainda a maneira como o Estado e o sector privado se relacionam em Portugal. Um esforço sério, direcionado para a redução da despesa do Estado, teria de ter em conta reformas nos modelos de contratação pública, na gestão das autarquias, no acesso a cargos dirigentes do Estado, na lei das incompatibilidades, num modelo de transparência fiscal, entre outras. Desta forma, o Estado não teria de “prostituir” os seus cidadãos mais carenciados a troco de algo que deveria ser, no atual momento da civilização, um direito reconhecido, e um dever do próprio Estado.
António Leitão, carta recebida por email