Arquivo

Demitido

Editorial

Inesperadamente, o concerto comemorativo do foral atribuído à cidade da Guarda transformou-se no assunto mais comentado da última semana. Não pelo valor intrínseco do espetáculo ou sequer pela relevância da artista no panorama musical nacional, que não tem, mas antes e só pelo estrondo da demissão do diretor do Teatro Municipal da Guarda (TMG). A contratação de Cristina Branco para atuar no Dia da Cidade por 11.070 euros foi chumbada pela Câmara da Guarda que, segundo a explicação de Álvaro Amaro, posteriormente aceitou que o espetáculo se realizasse por «cinco mil euros», que seria o valor previsto no orçamento da Culturguarda sem «alcavalas».

Perante as dúvidas originadas pelas declarações do autarca, o diretor do TMG convocou uma conferência de imprensa para esclarecer as diferenças de valor. E para demonstrar que não havia «alcavalas» mas sim custos reais, óbvios em qualquer espetáculo (e se o presidente da Câmara não sabia disso, devia primeiro ter-se informado, antes de recorrer a uma expressão indiciadora de traficância ou dolo). Mas, entretanto, Amaro foi informado das intenções do diretor do Teatro: evidenciar, com documentos, que o teor das declarações do presidente da Câmara não estavam corretas. Como consequência, Amaro considerou ilegítima a convocação dos jornalistas e desleal a propositura. Ato continuado, e antes que a conferência de imprensa se iniciasse: demitiu Américo Rodrigues por telefone, sem apelo nem agravo, segundo o demitido.

O diretor demissionário liderou durante oito anos o TMG a seu bel-prazer. Programou, contratou, decidiu de acordo com o seu livre-arbítrio e sem dar explicações a ninguém. Joaquim Valente e Virgílio Bento, por inépcia, incapacidade ou falta de liderança, nunca se afirmaram ou impuseram a Américo Rodrigues – ou, simplesmente, por concordarem sempre com ele. Perante a nova Câmara, Américo Rodrigues não interpretou as mudanças de poder, sentiu-se desconsiderado pela surpreendente e intangível nomeação para o CA da Culturguarda de Alexandra Isidro, a quem não reconhece qualquer mérito, capacidade ou atributos, e sentiu-se encurralado entre o ostracismo do novo edil e a falta de interesse pela cultura dos novos protagonistas políticos da cidade. E reagiu. Esticou a corda a ver para que lado rebentava… Mas Álvaro Amaro sabia que se não atuasse agora, nunca mais teria pulso sobre o diretor do TMG. Talvez estivesse à espera de um momento assim para se ver livre dele, como este diria depois, mas se Américo Rodrigues não contava com esta consequência então é porque não percebeu nada, não percebeu que tudo mudou e que a carta de alforria com que brilhou durante anos tinha expirado.

Américo Rodrigues é uma personalidade ímpar no panorama regional. O TMG é o seu projeto de vida – sempre viveu para abraçar e dar lustro e dimensão a essa quimera, que durante anos pareceu uma utopia absurda mas que acabou por acontecer. Fez as suas opções sem tergiversar perante a contestação abscôndita e pérfida de muitos. Agora, perdeu o brilho sem saber o que irá acontecer ao “seu” TMG. Nem ele, nem ninguém, porque se recordarmos a campanha eleitoral só ouvimos uma ideia para a Cultura: passar a receber financiamento «nacional». Américo Rodrigues não é insubstituível, mas fez muito mais do que qualquer dos seus algozes. Por isso, e para além das circunstâncias, pelo seu trabalho, mérito e legado (ainda que sem unanimismos) merecia mais do que um despedimento por telefone.

Declaração de interesses: Sou amigo de Américo Rodrigues desde o “tempo” da Casa da Cultura, no FAOJ, e aprendi com a sua ilusão a lutar pela utopia da Cultura, na minha adolescência. Discuti com ele o lançamento do projeto editorial O INTERIOR, de que seria colaborador. Américo Rodrigues não aprendeu a conviver com a crítica, nem a respeitar a diferença de opinião e, por isso, nunca admitiu a análise, a apreciação ou o comentário que neste jornal fomos publicando sobre a programação do TMG. Fomos sempre frontais e honestos na abordagem, como consequência, Américo Rodrigues viu-nos sempre como o inimigo e tratou-nos sempre de forma hostil. Perante a forma como foi demitido e considerando a sua dedicação à Guarda e à causa da Cultura, apresento publicamente o meu reconhecimento pelo seu trabalho, pelo caminho preconizado, pela sua dedicação e entrega à excelência e, mesmo quando discordámos, pelas opções em defesa da Cultura na Guarda.

Luis Baptista-Martins

Comentários dos nossos leitores
Maria fidelipissarra@sapo.pt
Comentário:
As minha lembranças são anteriores às tuas. Um desconhecido, mal amanhado, meio “penetra”, nas velhas salas do FAOJ (Praça Velha). Na altura causou-me má impressão e como a primeira é a que fica, foi sempre confirmando o que, inicialmente, achei dele: um mal amanhado! Na aparência e na essência. Mas entre “pequeninos” qualquer laparoto pode fazer de maiorsito… A partida dos que, genuinamente, consumiam e tentavam (re)produzir cultura (Rui Nuno,Zé e de mais uns quantos)permitiu-lhe o exclusivo da ocupação do Aquilo e o carreirismo “culturo-snob” que o havia de colocar no TMG. Tipo “jotinha” a ascender ao governo pelo escadote dos cartazes. Com este editorial emancipas-te de uns (pequeninos)e outro (laparoto). Quase que gostei…
 
Rita ritamourarita@gmail.com
Comentário:
A melhor crónica que li na imprensa regional nos últimos anos. Esclarecedora e reveladora.
 

Sobre o autor

Leave a Reply