De algumas das treze mil páginas do processo Casa Pia constam denúncias anónimas contra, entre outros, o Presidente da República. O momento da divulgação do conteúdo dessas denúncias foi aquele em que o processo bateu no fundo. Creio que muito pouca gente em Portugal chegou a acreditar, por um instante que fosse, que Jorge Sampaio tivesse alguma coisa que ver com pedofilia. É daqueles casos em que basta olhar para a cara dele para se perceber a enormidade da acusação. Por alguma razão foi eleito Presidente da República, não é?
Há outra coisa. Nenhum crime desperta mais repulsa do que os cometidos contra crianças. Pior ainda quando se trata de crianças entregues a uma instituição, muitas delas órfãs, todas elas vulneráveis. A simples suspeita da prática de um crime destes é suficiente para destruir a reputação, e a vida, de qualquer um. Carlos Cruz, Paulo Pedroso, mesmo que venham a ser absolvidos, não se livrarão nunca mais desse labéu, que haverá sempre alguém a invocar a falta de provas ou a incompetência da justiça. A não ser que se prove que toda a acusação é ela própria uma enormidade, capaz de tudo, capaz de lançar a lama sobre pessoas acima de toda a suspeita como, por exemplo, o Presidente da República. Ou então que contenha acusações como a formulada contra Herman José, que até estaria no Brasil na data dos factos que é acusado de ter praticado em Portugal.
O pior é as perguntas que estes tropeções suscitam. Antes de deduzir a acusação contra os arguidos, não teria sido melhor confrontá-los de forma mais precisa com os factos, o que poderia evitar agora estas vergonhas? Não teria sido inteligente averiguar onde estariam os arguidos nas datas em que eram suspeitos de ter praticado os crimes? Não seria melhor cumprir a lei e entregar aos interessados as denúncias anónimas que não tivessem originado procedimento?
Dirão que estas falhas são uma consequência do nosso sistema legal, em que alguém pode ser constituído arguido sem receber uma acusação em concreto, ou do nosso regime do segredo de justiça, que obriga a esconder os factos do processo de toda a gente, incluindo o maior interessado – o arguido. Dirão muitos que isto é kafkiano, e têm razão, mesmo que não saibam porquê. É que a personagem principal do romance de Kafka nunca chega a saber de que é acusado.
Se isto é assim, num processo em que trabalharam durante um ano, a tempo inteiro, três procuradores e uma dúzia de agentes da Polícia Judiciária, imagine-se agora o que acontecerá em milhares de outros processos, nos quais o procurador responsável por proferir uma acusação, ou um arquivamento, tem de dividir a sua atenção por centenas, ou milhares, de casos.
E é assim que, de um momento para o outro, o meu “homem do ano”, o que levou a cabo uma tarefa gigantesca em tempo record, pode passar a ser conhecido como a “abécula do ano”.
Por: António Ferreira