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Cultura e Política

Os governos das cidades europeias foram percebendo que a política se pode regenerar ou tornar mais assertiva pelo incremento de práticas culturais. Foi assim na Florença dos Médicis e é assim na actual disputa pela capitalidade cultural no seio das regiões. Na presunção de que o talento e a inteligência são contagiosos, o envolvimento nas questões artísticas e intelectuais do nosso tempo, sendo uma necessidade humana essencial, contribui mais que os discursos para alterar o padrão de vida e alcançar a “fortuna”, no triplo sentido renascentista de património, sorte e influência.

Centrada quase exclusivamente no fomento económico, a política europeia pós-Tratado de Roma (1957) não logrou superar os nacionalismos nem ampliar a cooperação a outros sectores (indústria, educação, etc.), embora alguns lúcidos dirigentes (Schuman e Monet) tivessem percebido que a lógica do Mercado Comum só poderia efectivar-se contagiando a sociedade dos países associados. Deslocando para o espaço cultural todo o conjunto de tensões que a liberdade de expressão é susceptível de dirimir, as sociedades abrem-se à diferença e tornam-se mais inovadoras e plurais, superando as querelas paroquiais. Daí justificar-se o esforço na promoção de relacionamento entre os diversos modos de vida e interesses que coexistem em cada local, ao invés da incessante busca de uma identidade perdida que conduz à adopção simplista do postiço.

Qualquer política cultural digna desse nome terá de superar a tentação de gerir os favores e as influências para cativar o poder performativo das instituições e dos actores que operam nesse sector; comportamento que, sendo frequente, gera clientelismos e sujeições perversas. Assim, o apoio financeiro público, à semelhança do mecenato, é fundamental para a formação de um certo espaço de liberdade democrática, devendo ser aberto à sociedade, em vez de regulado exclusivamente por “critérios” de gosto dos representantes políticos, que amiúde demonstram uma confrangedora estreiteza de horizontes na hora de eleger uma solução artística para um monumento comemorativo, revestir um muro, “embelezar” uma rotunda ou recuperar um edifício icónico.

A imagem do território depende grandemente dessas “opções” e é através delas que se forjam os parâmetros estéticos da sociedade. Por meio destes indícios avaliamos o desenvolvimento humano das comunidades, tanto maior quanto for a capacidade de perceber o património como um só: passado, presente e futuro. É na política cultural que a tradição se cruza com a modernidade, se reflectem as cosmogonias e se relaciona a herança com o projecto de um mundo melhor ou, pelo menos, regulado por premissas tendencialmente cosmopolitas, já que os ritmos característicos das comunidades são interdependentes e, no contexto global, não devem sucumbir ao abuso da memória que fecha o Interior sobre si mesmo.

Não obstante as práticas culturais, vivas ou cristalizadas, serem um recurso à disposição das comunidades – não só turístico –, raras são as oportunidades e os incentivos à criatividade, à conservação, à salvaguarda e à investigação dos seus diversos vectores. Muito menor é a articulação intermunicipal da programação e a rentabilização dos equipamentos, evitando a sobreposição, quando não a concorrência, sem que isso represente um acréscimo de qualidade dos bens culturais.

O mundo contemporâneo tem sido cruel para os meios desfavorecidos, incapazes de reagir com distanciamento crítico à propaganda e de operar a renovação simbólica que se impõe, no sentido da pluralidade e da captação de população. É esse paradigma de uma modernidade perdida que compete aos poderes públicos desta região inverter, recentrando a prática e a produção cultural como importante operador social pela sua capacidade comprovada de contaminar o quotidiano, em alternativa à espúria celebração do património.

Por: Francisco Paiva

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