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Crónica de uma geração desencantada

O Caderno Negro

Voltar a ti é fugir um bocadinho à morte. Dentro de ti há ruas, histórias, gente e uma espécie de saudade capaz de matar a própria morte. Voltar é fechar o ciclo. A ordem que existe nas ruas, nas casas, nas árvores e nos granitos. No silêncio que fala nas esquinas velhinhas. Tudo isto é escapar, por momentos, à morte.

Escapa-se à morte, por exemplo, na luz adocicada da biblioteca Eduardo Lourenço. Como se se pudesse viver para sempre dentro de um mundo que é um livro gigante, pintado com as cores da aldeia. Abrem-se as páginas e ouve-se o murmurar tétrico do terço da geração de preto da avó – que não conseguiu escapar à maldição da morte. É Maio e o toque das ave-marias. É Agosto e o ritmo persistente e quente do baile da aldeia. Era o tempo em que ainda havia bailes na aldeia. Hoje também há, mas é como um casamento que acabou e que continua só por conveniência e respeito pelo passado. As festas da aldeia são lugares vazios e sem histórias para contar.

O tempo é feito de morte, porque o morrer é a cadência de cada dia. Mas a cidade-granito-capricho morre mais rápido do que o próprio tempo. Ninguém quer morrer, ninguém pensa em morrer e a Guarda deve estar aborrecida por saber que está prestes a morrer. A geração que se foi só volta de vez em quando – mesmo sabendo que contrariar a morte é passar na tua rua e saber todos os rostos. Somos quase irmãos, frutos da mesma árvore. Com os mesmos caprichos. Magoamo-nos mais do que as outras gentes. E não sabemos chover, como também não sabemos chorar.

Voltar é como chegar a casa, depois de um dia péssimo, e calçar as pantufas. Ser pequeno e aterrar dentro de uma caixa de papelão gigante, onde as paredes são forradas a musgo do Natal e veludo da Primavera. Voltar à geometria teimosa dos castanheiros, jogar à macaca para fugir dos ouriços. Ver as hortas crescer. O céu é mais azul na Guarda. Voltar é saber, de um saber de verdade, que nenhuma outra serra se chama Estrela.

Talvez um dia te amem de verdade. A tempo de te salvar do tédio, do silêncio e da solidão. Perguntas por nós, geração desencantada. Mas, um dia, vais morrer sozinha, amontoado triste de pedras que só fica na história de quem a souber contar. Terra de gente forte, tantas vezes mesquinha, poupada. Terra de poetas que nunca viram o mar. E a geração desencantada não terá tecto. De afectos, de histórias e de gerações.

PS – Vou passar por aí menos vezes. A culpa é das portagens, desculpa. Mais explicações? Pergunta ao governo.

Por: Rosa Ramos

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