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Crónica de um desastre anunciado

O que é grave não é o primeiro-ministro ser apanhado a faltar à verdade. O que é grave é que isso aconteça num negócio em que ele se empenhou e que visava uma televisão contra a qual tinha lançado uma fatwa. Agora, amanhe-se.

Há um ponto em que o Governo tem toda a razão: em Portugal a liberdade de expressão e de opinião não está em causa. Há outro ponto em que tem razão formal: as decisões dos tribunais não devem ser comentadas nem postas em causa. Mas, a partir daqui, o Governo não tem razão em mais nada. E perde toda a razão quando usa esses dois argumentos para achar que não tem nada a explicar.

O Governo tem muito que explicar. E não é por ter faltado à verdade. Não embarco em derivas calvinistas e afirmo, sem problemas, que todos os governos e todos os primeiros-ministros faltam, de quando em vez, à verdade. Em matérias empresariais isso é, aliás, uma prática corrente e necessária (o segredo sempre foi a alma dos negócios).

Se o primeiro-ministro tivesse entrado em contradição com, digamos, negócios da Cimpor ou da TAP não havia razão para fazer uma tempestade. Os jornais teriam a obrigação de chamar a atenção para o facto. E a oposição, se o entendesse, faria algum barulho com isso.

Mas este caso é politicamente diferente e muito relevante. Por uma razão simples: no Congresso do PS, em Fevereiro de 2009, o país assistiu a um inusitado ataque do secretário-geral socialista (e primeiro-ministro) ao “Público” e, sobretudo, à TVI. Fazer isso num congresso partidário a quatro meses das eleições europeias foi um acto pensado. Sócrates mediu os riscos desse acto e explorou uma questão que iria dividir a opinião pública.

Um primeiro-ministro deve fazer discursos partidários dessa natureza? Não. Mas pode? Claro que sim. O problema é que, depois de o fazer, não pode aparecer ligado a um negócio ou acto que afecte a empresa sobre a qual lançou uma fatwa.

E este foi o seu erro fatal. Depois de criticar a TVI, José Sócrates não resistiu à possibilidade de escolher os seus novos patrões, quando percebeu que a Prisa ia vender 30% do capital.

Podia e devia ter-se afastado, ele mais os inenarráveis administradores que, através da golden share nomeou para a Portugal Telecom. Podia e devia ter proibido a PT de voltar a meter-se em negócios que antes lhe correram mal, porque a natureza do poder não muda. Se o PSD não resistiu a tentar usar a PT, como é que o PS ia resistir? Podia e devia ter evitado tentar redesenhar grupos de comunicação social, porque essas histórias acabam sempre mal.

Devia ter poupado uma empresa como a PT a este desastre. E devia ter feito o mesmo ao PS, ao Governo e, já agora, a si próprio. Acabaram de vencer umas eleições e já têm o país inteiro a pensar nas próximas.

Por: Ricardo Costa

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