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Crimes exemplares

Selecção Natural

1

Eu tenho dois amores

em nada são iguais.

Não tenho a certeza

De qual eu gosto mais…

Enquanto ela cantava, conseguiu olhar finalmente para o marido, recostado na cadeira da sala de jantar. Tinha a cabeça inclinada para trás, os olhos perdidos no vazio, uma espuma esverdeada a escorrer-lhe da boca. Na mesa, a ressudante mancha de vinho, entornado na toalha por um copo caído no chão, e os restos do jantar interrompido a meio. “Ora! Nunca fui boa em contas!”, ainda pensou, antes de pegar no telefone.

2

Menina estás à janela

com teu cabelo à lua.

Não me vou daqui embora

sem levar uma prenda tua…

Naquela noite de domingo, o feitor da Quinta das Rolas aproveitou o magnífico luar de Verão para desenferrujar as pernas. Um cheiro muito forte e indefinido estava a guiá-lo para os lados do solar do Côto. Um cheiro que ele bem conhecia, mas não tão intenso. Mal chegou, apercebeu-se de que o enorme portão de ferro estava aberto e, logo à frente, do que parecia ser uma cratera de uma explosão. Avançou. No centro, um vulto colado ao chão, rodeado de pedras que tinham sido derrubadas do muro. A coisa estava para quem tivesse sangue frio, como ele. Aproximou-se. O corpo estava desfigurado. A custo, lá conseguiu reconhecê-lo. Cruzes canhoto, era o filho do patrão! O que é que houve aqui?

Como toda a gente na aldeia, bem sabia que o solar era habitado pela única herdeira, cuja beleza só era igualada pelo mistério em que vivia. Segundo diziam, entre outras bizarrias, tinha a casa cheia de recordações de todo o tipo que o pai tinha trazido da guerra do Ultramar. Examinou o corpo. Do bolso interior do casaco retirou uma folha de papel. Ainda se podiam ler os versos, escritos à mão, para a sua amada…

3

Que saudades eu já tinha

da minha alegre casinha

tão modesta quanto eu…

Quando finalmente acordou, só viu escuro à sua volta. Bateu, bateu, nada. Mas era estranho: os ruídos quase imperceptíveis que vinham do outro lado eram-lhe familiares. Conseguiu distinguir o relógio de cuco, a campainha da porta, o telefone a tocar, a 4ª sinfonia de Mahler que o Zé Tó tanto gostava, enquanto na mesa de trabalho dava os retoques finais no seu último projecto. Nos últimos tempos, falava entusiasticamente sobre o que ele chamava “arquitectura viva”. Bateu com mais força. Começou a gritar por socorro, num pânico descontrolado. Mas as espessas paredes de betão não cediam nem um milímetro. Ao fim de algumas horas, esgotada, deixou-se cair na estreita faixa de solo, que, reparou então, não media mais de meio metro. Um pavor indizível começou a tomar conta dela, toldando-lhe os pensamentos. Ao mesmo tempo, um torpor desconhecido invadia-lhe o corpo, à medida que o oxigénio ia escasseando. Imagens soltas sucediam-se no seu cérebro, a uma velocidade vertiginosa. Até que uma espécie de véu de luz se abateu sobre ela, lentamente…

4

Gosto muito de cinema. Mais filmes de acção, alguns a puxar para o sentimental. Desde que haja pancadaria e amores trocados, lá estou eu! Antigamente ia ver as fitas com a Paulinha “ruiva”, na altura a minha namorada. Sempre de mãos dadas. Uma vez, durante o intervalo, aviei o Silvino com dois crosses, só porque fez um aparte rasca sobre as pernas dela.

Ora bem, aqui há uns meses aconteceu aquilo. Ah, não sei se já vos disse, mas detesto duas coisas: que façam comentários fora de tempo durante as fitas e que me calhe um cabeçudo na fila da frente. Naquela noite ia ver, pela quinta vez, o “Casablanca”. Aquilo sim, é que era um filme! Até já sabia algumas cenas de cor e salteado. Só que, na cadeira da frente sentou-se um sujeito que parecia uma torre. Para chatear ainda mais, era ele sempre a mexer-se no assento, a coçar o cu ou sei lá o quê. E não parava de fazer comentários alarves por dá cá aquela palha. Numa cena em que estava a Ingrid Bergman em grande plano, o tanso gritou: “andas a pôr os palitos ao outro, sua badalhoca!”. Não aguentei mais. Saquei da navalha que tinha no bolso e espetei-lha bem na garganta. Na assistência, houve quem se tivesse rido dos soluços dele, até esticar. Se calhar, pensavam que tinha a ver com o filme! Idiotas!

Amanhã vão-me dar as tais injecções. “Vais ficar de vez sem a tosse “, disse-me um guarda durante a revista. Não importa. Espero que haja matiné.

Por: António Godinho

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