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Contrabando sem pecado

Tresler

“Contrabando” era nos meus tempos de seminário a margarina que se levava de casa dos pais à socapa para untar o pão no refeitório ou os figos secos que clandestinamente nos adoçavam as noites. Outro contrabando era o da minha avó paterna, que ia abastecendo de víveres a aldeia a cerca de 20 quilómetros da fronteira. Quando regressava da fronteira já tinha os produtos destinados, muitos deles encomendados regularmente. Lembro-me de ela trazer, a pedido da minha mãe, a “pana” (bombazina) para as calças e as alpergatas ou as pantufas. Lembro-me do “pão espanhol”, branquíssimo e mole como cá não se fazia, dos caramelos, ainda raros no Portugal da década de 60, das “galhetas” com nata, das garrafas de Pedro Domecq de vez em quando. Sendo uma contrabandista de pequenas quantidades, arriscava no entanto o aparecimento dos guardas fiscais que, de tempos a tempos, faziam as suas apreensões. Lá se ia o ganho de duas ou três incursões… No entanto, a ti Ana Grila nunca foi de desistir e manteve a sua atividade de pequeno contrabando quase até à morte.

Quando falamos de contrabando nas terras da Raia, nos primeiros 60 anos do século passado, falamos de outra coisa mais arreigada e em tamanho grande. Falamos de uma forma de vida, de sobrevivência pura e dura, também de uma guerrilha assumida, isto é, uma atividade contínua e sistemática, com períodos de escaramuças e acontecimentos trágicos a manchar de sangue a paisagem de tempos a tempos, até tudo voltar de novo ao mesmo ritmo de contrabando visto como um negócio, a única maneira de se ganhar a vida. Eram duas linhas de aldeias, sobretudo do concelho do Sabugal, que assim sobreviviam deste tráfico: Fóios, Quadrazais, Batocas, Aldeia do Bispo, Nave de Haver, etc. do lado de cá e outras tantas do lado de lá. “Contrabando, delito mas não pecado”, expressão que dá nome ao livro de Manuel Leal Freire sobre a gesta do contrabando nas suas várias vertentes, constitui a síntese duma perspetiva de vida de que a generalidade das pessoas comungava. Na obra de Nuno de Montemor, “Maria Mim” (passada nos finais do séc. XIX e início do séc. XX), mesmo o pároco de Quadrazais recusa embarcar nos estratagemas dos guardas para que convença os paroquianos a entregar o produto contrabandeado, e, instado a jurar falar verdade, arranja sempre uma maneira de desviar para canto. E, depois de uma fase em que a guarda se admira de ver todas as mulheres grávidas (com o ventre cheio de roupa de contrabando), consegue-se arranjar uma maneira de vestir os santos da Igreja com essas roupas e vão ser mesmo os Santos e os altares os únicos a escapar à apreensão. As “grávidas” não vão resistir às “apalpadeiras” chamadas de Vilar Formoso.

O contrabando, como refere Leal Freire num dos textos da obra acima referida, era considerada uma atividade social e moralmente não censurável e não fazia parte dos pecadilhos que os contrabandistas confessavam na altura da desobriga. Aliás a miséria da generalidade da população justificava esta aceitação da atividade e a sua legitimidade. Num longo diálogo que a quadrazenha Maria Mim mantém com o oficial que lidera a operação de apreensão do contrabando, ela justifica o contrabando perguntando ao oficial se numa mão-cheia de cereal seria capaz de distinguir o português do espanhol e acrescentando que “todas as coisas são de Nosso Senhor, de todos os seus filhos, de toda a gente”. E acaba por referir que, apesar de não entender de leis, não acredita “que uma pessoa seja ladra ou honrada, por a lei dos fiscais o dizer”. A razão oficial da repressão contra o contrabando há mais de um século (o risco de trazer para cá a “peste”, ou seja a epidemia) é também desmistificada já que os médicos se riam da criação dos “cordões de fronteira”, considerando-a “inútil e vexatória”.

Curioso é ainda que o contrabando tenha tido também consequências bondosas ao nível das relações entre aldeias vizinhas dos dois lados da fronteira, com casamentos de parte a parte, reforço das tradições taurinas, nomeadamente das capeias, divulgação das representações de teatro espanholas, adaptação de rezas para o nosso idioma, etc. Por outro lado, o contrabando, para cá e para lá, foi coisa que foi evoluindo, passando, conforme as épocas, pelo gado, pelas roupas, pelo volfrâmio, pelo café (estes por exemplo na altura da 2ª Grande Guerra). Diga-se ainda em abono da verdade que a pequena compra de gente anónima não era grandemente perseguida pelos fiscais, privilegiando-se o contrabando grosso para venda. E todos sabemos que os quadrazenhos se tornaram mestres de vendas em vastas partes do país, vendendo sobretudo os tecidos contrabandeados mas também outros produtos fora da sua localidade. Fino e arteiro, à pergunta “Você diz que não ganha nada e vem de tão longe?”, o quadrazenho respondia “Ganho o que róbo” (em vez de cobrar o lucro no preço cobrava-o nos pesos ou nas medidas falseadas).

(Nuno de Montemor, “Maria Mim”, União Gráfica, Lisboa, 1939; Manuel Leal Freire, “Contrabando, delito mas não pecado”, Guarda, 2001, obra de muito mérito em edição de autor, infelizmente crivada de erros e gralhas tipográficas)

Por: Joaquim Igreja

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