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Condenação à abstinência

A abstinência, como se sabe, é a mais aberrante das perversões sexuais. A religião e as inconveniências do passar do tempo têm conspirado incessantemente a seu favor, mas parecia que a maré tinha virado. O citrato de sildenafila e os lubrificantes à base de água, à boleia de tempos mais liberais, de mais informação sobre o assunto e de algum silêncio clerical vieram revelar à comunidade duas ou três verdades incontornáveis: as camas não servem apenas para dormir, os órgãos sexuais não se destinam apenas à reprodução, as avós e os avôs não gastam o seu tempo, o tempo que lhes resta, apenas a tratar dos netos.

Nunca houve uma sociedade ou uma época tão consciente da sua sexualidade como a nossa. Queremos todas as suas vantagens sem nenhum dos inconvenientes e não queremos desistir dela por preço nenhum. Queremo-la desde a adolescência e até ao fim. Exageramos muito a sua importância e fantasiamos muito, talvez demasiado, sobre ela. Quando acaba, seja por que razão for, é como se a morte, a grande, estivesse muito mais perto. É, do início ao fim, a compensação ou recompensa por excelência. Assentemos então no seguinte, sem moralismos ou juízos de valor, apenas tendo em atenção as evidências do nosso tempo: quando alguém perde a sua vida sexual, sofre um dos maiores danos físicos que é possível infligir-lhe. Não entender isto é não entender o essencial sobre o nosso tempo, o nosso corpo, é alinhar com milénios de obscurantismo, ignorância e culpa (se é bom, é porque engorda, faz mal ou é pecado).

Queremos como magistrados, de preferência, pessoas que percebam e actuem de acordo com o espírito do tempo. No caso dos juízes do Supremo Tribunal Administrativo que baixaram a indemnização atribuída a uma mulher a quem foi destruída a sua vida sexual com o argumento de que tinha mais de cinquenta anos, vejo com alguma apreensão a forma como apreendem esse espírito e actuam de acordo com ele.

(Em 2020, continuando as actuais tendências de aumento da esperança de vida e de diminuição da natalidade, espera-se que a população portuguesa tenha uma média de idades próxima dos cinquenta anos.)

Por: António Ferreira

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