Imagine o leitor que um dos muitos organismos de regulação do Estado decide multá-lo, contra toda a lógica das coisas e contra a mais evidente e elementar justiça. Cala-se ou vai para tribunal? Ninguém se fica, e muito menos o leitor e, por isso, impugna. A multa é de duzentos e cinquenta euros, mas para a impugnar tem de pagar cento e dois euros de taxa de justiça e, de preferência, contratar um advogado. Depois tem de apresentar o recurso, dirigido ao juiz do tribunal competente, na autoridade administrativa recorrida. O recurso tem de ter os fundamentos de facto e de direito, indicar a prova que sustente o seu ponto de vista e terminar com conclusões – estas últimas sob pena de rejeição imediata (eu bem dizia que era melhor contratar um advogado). Tudo isto, com uma ou outra volta, é mais mais ou menos igual em qualquer país civilizado. Os melhores destes dispensarão as conclusões se for minimamente perceptível o que pretende com o recurso, ou então irão notificá-lo para as trazer ao processo.
Imaginemos agora que corre tudo bem e o juiz lhe dá razão. Não tem de pagar os duzentos e cinquenta euros e, pensa, o tribunal devolve-lhe a taxa de justiça. Com alguma sorte, ainda o compensam das despesas com o advogado e pagam-lhe uma indemnização pelos incómodos causados, não é? Não. Não terá de pagar a multa e já é uma sorte. As despesas com o advogado são por sua conta e a indemnização, esta, nem pensar. E as custas do processo, como a taxa de justiça, ao menos estas são devolvidas, certo? Errado. Havia quem entendesse que estas custas teriam de ser devolvidas, nem que fosse de acordo com o princípio de que quem perde o processo deve arcar com a despesa, mas uma decisão recente do Supremo Tribunal de Justiça desfez as dúvidas: “Sendo proferida decisão favorável ao recorrente em recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não há lugar à restituição da taxa de justiça, paga nos termos do artigo 8º, n.os 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais”. Esta decisão foi publicada no Diário da República no dia 14 de Abril e constitui jurisprudência obrigatória, no sentido em que, a partir de agora, os tribunais vão ter de a seguir. Um dos argumentos foi ser a justiça um serviço e que o pagamento de uma taxa de acesso a esse serviço impede a “banalização dos recursos” – uma maneira de dizer que se protegem os tribunais do excesso de processos. A partir de agora, se a multa for pequena, e por maior que seja a injustiça, mais vale então ficar calado. Ou, se o sentimento de injustiça o não deixar dormir, terá de fazer algo que vai contra o espírito do acórdão do Supremo e meter o Estado em tribunal, nem que seja no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelos prejuízos que lhe causou.
É claro que tudo se resolveria muito facilmente com uma pequena alteração legislativa, mas já percebemos todos que as multas, em lugar de servirem para desincentivar os cidadãos de comportamentos ilegais, são sobretudo uma fonte de receitas. A partir de agora, com este acórdão, serão também um instrumento para se cometerem arbitrariedades.
Por: António Ferreira
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