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Colecções para cromos

Observatório de Ornitorrincos

Se a semana passada se alertava nesta coluna para os riscos inerentes à invasão do território por bichos estranhos, facto reconhecível à vista desarmada por todos aqueles que conseguem escrever três mil trezentos e trinta e três sem repetir nenhum algarismo, hoje quero aproveitar este espaço para reflectir sobre a avalanche de produtos que os jornais teimam em oferecer aos leitores. Talvez por ser propositado, a edição da semana passada – com data de 1 de Abril, dia das mentiras – anunciava uma colecção de DVD’s de documentários chatíssimos, talvez com excepção do “RDA: erro ou estupidez”, uma vez que a RDA foi precisamente as duas coisas em simultâneo. Por ser tudo mentira – a venda dos DVD’s com o jornal, os títulos dos documentários e a existência da RDA – estamos em condições de assegurar que esta semana O Interior é provavelmente o único jornal português que não traz complementos nem acessórios por mais meia dúzia de patacos do bolso do leitor. Se eu fosse director do jornal, usava precisamente este facto como estratégia de marketing: “Com o seu O Interior, não leva mais nadinha para casa.”

Qualquer cidadão bem formado que entre num quiosque para comprar um singelo jornal ou uma simples revista, vê-se inundado de livros, CD’s, DVD’s, CD-ROM’s, enciclopédias, bandas desenhadas, faqueiros, Monopoly’s, jogos do galo, mesas de pé-de-galo, cartas de Tarot, cartas de amor, chinelos de praia, viagens ao Burundi e, como tudo isto não bastasse, artigos de opinião de Fernando Rosas e Boaventura Sousa Santos.

Hoje, milhares de portugueses têm em casa romances que nunca lerão e filmes que nunca verão, todos a ocupar imenso espaço nas prateleiras onde três elefantes de porcelana e uma girafa de marfim seriam mais condizentes com a decoração envolvente, fazendo aquilo a que os designers de interior gays chamam “fazer pendant” (em português, “grande paneleirice”). Muito me alegraria se alargassem a oferta a outro tipo de produtos, tendo em atenção os leitores de cada publicação. Por exemplo, o Público ofereceria as obras completas de Marx e Engels por apenas mais 4,20 €, o DN lançaria a autobiografia do herói popular Rui Teixeira em fascículos, o Expresso convidaria os seus leitores a tomar contacto com um sketch dos Monty Python por semana (mais do que um sketch semanal pode provocar perturbações em quem aprecia o tom do semanário) e em cassetes VHS ou bobines de Super 8 (consoante pertencessem à geração de leitores mais nova ou mais antiga). O diário 24 Horas poderia distribuir aos seus leitores bonecas insufláveis à peça (às terças e sextas, vésperas do dias tradicionais para os afazeres sexuais conjugais) e com o Correio da Manhã a publicação semanal, em capa dura, de uma lista dos agentes da GNR que aceitam subornos para os sete dias que se seguem.

Eu vi um ornitorrinco

José Saramago

Esta semana vi em vários canais de televisão e em diversos jornais este ser grasnante, com bolsa URSSupial e pés de barro a vociferar contra a democracia liberal. Invadiu as livrarias do país com um romance sem ponto e sem nó. Alguns patos invejosos chamam-lhe lúcido. Outros dizem que é um uivo à navegação. Parece que já ganhou um prémio literário importante e que imigrou para as Canárias. Talvez seja pouco preocupante. Mais que um invasor, é um ornitorrinco desertor e em vias de extinção.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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