Arquivo

Coitadinho do Aleijadinho

Quebra-Cabeças

Não existe coisa pior, para quem está incapacitado, do que a condescendência dos outros. Com os nossos defeitos, as nossas lesões, podemos nós. Não é a vida um constante processo de adaptação, de reajustamento? Não aprendemos a escrever com a mão esquerda quando perdemos a direita? Insuportável é o olhar de piedade dos que têm as duas mãos. É aí que definitivamente perdemos algo, nos minoramos, ficamos aleijados. É verdade que a força de um deficiente é muitas vezes a sua fraqueza, e não quero significar com isso a possibilidade de chantagem emocional que a sua condição lhe proporciona. Essa força é fruto daquela readaptação, do órgão que se sobrevaloriza em compensação pela perda do outro.

O problema é que o Homem, medida de todas as coisas, padrão de todas as façanhas, é o homem sem defeito ou deformidade. Sem deficiência. Querer obrigar deficientes a competir uns com os outros é assim o mesmo que fazer um campeonato de deformidades e, pior que tudo, levar a ganhar o menos disforme – que na sua quase normalidade leva vantagem sobre todos os outros.

São por isso obscenos os Jogos Paralímpicos na sua exposição de chagas, no seu objectivo de opor em competição deficientes a deficientes, na sua contabilização de medalhas obtidas tantas vezes por atletas apenas menos feridos que os outros, numa cruel demonstração da superioridade daqueles que são quase “normais”.

Em Portugal é notícia de primeira página a conquista de uma medalha por um dos nossos paralímpicos. Percebo o afã bem-intencionado da iniciativa, mas não posso deixar de anotar que este parece um país de deficientes, em que as façanhas dos representantes de uma parte tão importante da população têm de ser notadas, e em lugar de destaque. Não se trata da evidente deficiência mental de muitos governantes e responsáveis públicos, que agem como se faltasse na sua cabeça uma peça insubstituível. É pior. É que parece haver milhões de deficientes em Portugal. E estão em todo o lado, nas forças armadas, nas polícias, nas escolas, nos tribunais, em inúmeros cargos públicos importantes em que a sua condição lhes proporciona importantes vantagens sobre aqueles que nada têm de se queixar.

É verdade que tivemos a guerra colonial, que temos péssimas condições de higiene e segurança na maior parte das empresas, que as nossas estradas são autênticas fábricas de estropiados. Mesmo assim, não estaremos a exagerar quando aparecem tantos professores a invocar deficiências no recente concurso? E que dizer das estatísticas sobre a enormidade de benefícios fiscais concedidos a supostos deficientes?

E assim vamos um dia chegar a um ponto em que alguém, para ser tratado com justiça, em pé de igualdade com milhões de outros fingidos, vai ter de invocar, em prejuízo dos que sofrem mesmo, uma dor que ele próprio não tem.

Por: António Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply