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Cidade do gelo

Observatório de Ornitorrincos

Referi aqui, na última crónica, a importância de equilibrar com justiça as relações entre o ser humano e a água em estado sólido, desiguais ao ponto de muitas vezes o gelo ser tratado como um mero cubo refrigerante de bebidas alcoólicas, sem respeito pelas convicções do gelo, que pode perfeitamente ser abstémio.

O ser humano explora abusivamente as características de frescura do gelo, sem considerar que este, por ser água, tem uma grande vantagem sobre os primatas. Enquanto os hominídeos falecem na ausência de oxigénio, a água, quando privada de oxigénio, transforma-se em hidrogénio, que por sua vez é o gás que forma as estrelas.

Num aparte a esta importante reflexão, repare-se que algumas estrelas mediáticas têm particular preferência por dormir em câmaras de oxigénio. Sendo muitas das vezes estrelas com características do hidrogénio molecular – não têm cor, não têm cheiro, e muito menos têm gosto, mas também não são tóxicas – a combinação nocturna com as moléculas de oxigénio transforma-os em água. No caso de estrelas socializadas em ambientes frios, podem mesmo transformar-se em pedras de gelo.

E há também críticas a fazer à mudança de género operada pela solidificação. A feminina água, depois do ponto de congelação, torna-se no masculino gelo. É claramente uma manifestação da sociedade machista patriarcal considerar que, no seu estado rígido, a água não pode manter a sua feminilidade, como se uma característica expectável do feminino seja uma maleabilidade semelhantes à dos líquidos. No entanto, o senso comum, tantas vezes em contraciclo com o pensamento científico, aponta para que, especialmente após vários anos de convivência conjugal, também um corpo feminino possa ser encontrado no seu estado gélido e rígido.

Apesar da relação notoriamente desigual, os humanos sentem ainda necessidade de se proteger do gelo, particularmente quando este se encontra livremente na natureza, em grutas ou altas montanhas. Mesmo quando o criam em suas próprias casas, os humanos enfrentam o gelo temerosamente. E, às vezes, lá lhes cai uma estalactite em cima da cabeça.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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