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Cidade de memórias…

Anotações

Na Guarda, a preservação e salvaguarda de espaços de memória citadina continua a ser feita com uma incompreensível morosidade que, tantas vezes, não responde, em tempo útil, às exigências e especificidades dessas parcelas da sua identidade. O atual contexto económico não suscita, entretanto, grande otimismo face a uma grande mudança mas ideias novas e alguma criatividade poderiam atenuar determinadas realidade.

O património da Guarda vai muito além dos mais simbólicos monumentos e passa, também, pela memória e legado de muitas personalidades ligadas, seja pelo nascimento, seja por laços familiares ou afetivos. Estranhamente, os locais a elas associados caiem no esquecimento e vão, lentamente, sucumbindo aos efeitos dos anos. Veja-se o exemplo da casa onde viveu o poeta e republicano Augusto Gil.

E esta anotação vem a propósito da passagem de mais um aniversário da sua morte, que é assinalado na próxima semana; Gil não pode ser reduzido apenas à autoria de uma conhecida balada; é um autor que tem de ser compreendido na sua época e analisado em função de toda a sua produção cultural, do seu contributo em prol da República, faceta pouco divulgada.

Augusto César Ferreira Gil nasceu na freguesia de Lordelo, Porto, a 31 de Julho de 1870; berço fortuito devido à circunstância de sua mãe ali se encontrar, acidentalmente. Gil passou a maior parte da sua vida na mais alta cidade de Portugal e aqui fez os primeiros estudos; frequentou, depois, o Colégio de S. Fiel, após o que regressou à Guarda, onde se encontrava em 1887.

Tempo depois, ingressou como voluntário na vida militar que deixou com o início dos estudos na Escola Politécnica; estes seriam interrompidos, contudo, por motivo de doença. Em finais de 1889 foi autorizado a frequentar a Escola do Exército onde o aproveitamento letivo não foi exemplar; passados dois anos, em Maio de 1891, ingressou no Regimento de Infantaria 4 e aí prestou serviço até ao mês de Novembro.

De novo na Guarda, Augusto Gil fez nesta cidade, em 1892 e 1893, os exames do Liceu, rumando posteriormente para Coimbra, em cuja Universidade cursou Direito; na cidade do Mondego teve como companheiros Alexandre Braga, Teixeira de Pascoais, Egas Moniz e Fausto Guedes Teixeira, entre outros.

Concluída a formatura, em 1898, Augusto Gil regressou à Guarda; neste período a vida não lhe correu de feição e foi confrontado com diversos problemas, de ordem profissional e de ordem económica; pretendeu exercer advocacia mas não conseguiu «clientela que lhe desse ao menos para sustentar o vício do tabaco»; curiosamente, o poeta já tinha vaticinado estas dificuldades «na aldeia sertaneja, onde hei-de ser/o melhor poeta e o pior legista».

Desejou ser professor provisório do Liceu mas o conselho escolar dessa época não o considerou competente para reger a cadeira de português. Ao longo dos anos sucederam-se diversas contrariedades e episódios que deixaram traços indeléveis no percurso literário de Augusto Gil. Decidiu ir para Lisboa e foi trabalhar com Alexandre Braga; em 1909 regressou à Guarda, enredado em dificuldades financeiras.

Com a implantação da República, impulsionou o aparecimento do Centro Republicano da Guarda e fundou o semanário “A Actualidade”, que dirigiu entre 1910 e 1912. Embora este jornal tenha surgido com meio de promoção do ideário republicano, assumiu um pendor acentuadamente literário, contando com a colaboração do Pd. Álvares de Almeida, Ladislau Patrício, Amândio Paul e Afonso Gouveia, para além de outras personalidades.

No mês de Novembro de 1911 – quando João Chagas fez parte, pela primeira vez, de um governo da República – Augusto Gil foi nomeado Comissário da Polícia de Emigração Clandestina, pelo que foi viver para Lisboa.

Após ter exercido, durante escassos meses, o cargo de Governador Civil de Aveiro, voltou para a capital onde teve, em 1918, uma passagem pelo Ministério da Instrução Pública; no ano seguinte foi nomeado Diretor Geral das Belas Artes. Em Lisboa foi uma figura altamente conceituada nos meios intelectuais e sociais; assim não é de estranhara a homenagem de que foi alvo no Teatro Nacional, em 19 de Junho de 1927. A comissão promotora dessa iniciativa integrou nomes como Júlio Dantas, José Viana da Mota, Henrique Lopes de Mendonça, Columbano Bordalo Pinheiro, Eduardo Schwalbach e Gustavo Matos Sequeira.

O trabalho de Augusto Gil cruzou-se, frequentemente, com períodos de grande sofrimento, resultado da doença que o atormentava. «A doença que desde o primeiro quartel da existência o consumiu e as dificuldades materiais com que sempre mais ou menos lutou, encontram-se no fundo de toda a sua obra, e que sabe se até não a condicionaram», observou Ladislau Patrício num apontamento biográfico sobre o poeta.

Nomeado Secretário-Geral do Ministério da Instrução Pública não chegou a tomar posse desse cargo pois morreu a 26 de Fevereiro de 1929, em Lisboa (e não na Guarda, como é referido nalguns sítios na Internet…).

O funeral de Augusto Gil (a 1 de Março, na Guarda) constituiu, de acordo com os relatos jornalísticos da época, uma grande manifestação de pesar. «Tudo o que a Guarda tem de mais distinto acorreu a tomar parte na sentida homenagem» e participar no cortejo fúnebre que se «revestiu de desusada imponência». Os restos mortais de Augusto Gil repousam num jazigo localizado logo à entrada do cemitério municipal da Guarda, ostentando dois versos de “Alba Plena”: «E a pendida fronte, ainda mais pendeu…/E a sonhar com Deus, com Deus adormeceu…»

“Musa Cérula”, “Versos”, “Luar de Janeiro”, “O Canto da Cigarra”, “Gente de Palmo e Meio”, “Sombra de Fumo”, “Alba Plena”, “Craveiro da Janela”e “Avena Rústica” foram as principais produções literárias deste poeta, cujo trabalho evoluiu quase à margem de escolas ou correntes literárias. «Não é um romântico, nem parnasiano, nem simbolista: é ele – o Augusto Gil – nome que é um gracioso ritmo», observou Bulhão Pato. Muitos dos versos de Augusto Gil passaram para o cancioneiro popular, como sublinharam alguns estudiosos da sua obra, suportada num verso melodioso e num ritmo suave.

«Foi e é um dos poetas entre nós a quem o povo mais abriu o coração, e quando o povo abre o coração a um poeta, o seu amor repercutir-se-á pelo tempo além», como anotou João Patrício. De facto, se Augusto Gil cultivou a poesia, as letras, cultivou também o seu amor pela Guarda onde escreveu uma grande parte dos seus melhores poemas; a cidade bem se pode orgulhar do seu “mais alto poeta” e recordá-lo é um dever de memória.

Por: Hélder Sequeira

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