«Trinta anos antes, este lugar estaria virgem. E ele seria mais novo, o sonho ainda fresco, ainda atingível. O ar mais claro, as montanhas recortadas mais vivamente contra o céu, a floresta mais viva. Uma coisa do género. Um qualquer sentido vívido do mundo que se dissipava com o tempo. É-nos dado um presente, mas é um presente frágil, efémero. Agora este local estava mais perto de uma ideia, esvaziado, falho de substância. Reduzido a mosquitos, a um corpo velho e cansado, a um ar ordinário. Era aqui que estava destinado a viver, mas deveria tê-lo feito nessa altura», é este o pensamento de Gary quando decide cumprir o seu velho sonho: construir uma cabana numa ilha deserta (a Ilha de Caribou). Mas em que ponto fica a vida de Irene (esposa de Gary) quando o sonho não é o seu, e a ilha não era aquilo que ela previa como destino para a sua reforma?
Irene apoia-se no fim da sua mãe para iniciar o seu próprio fim; Gary mexe em coisas quando percebe que nada na vida dele está onde deveria estar; Rhoda (filha de ambos), sempre em aflição, anseia por aquele momento em que a sobremesa chega, finalmente, com recheio; Jim (namorado de Rhoda) exercita o seu corpo enquanto pensa nos “bons dez anos” que ainda tem pela frente; Mark (irmão de Rhoda) ou está a pescar, ou anda ocupado com a álgebra, ou saltita para a sauna com os amigos, mantendo um total desleixo para as dores dos outros; Karen (namorada de Mark) vive perdida no seu mundo privado; Monique (companheira de Carl) sente que até na estupidez o melhor é estar viva; Carl olha para os assuntos do coração como uma metáfora, para mais tarde compreender que até os ricos possuem um ponto fraco: têm segredos.
Numas páginas pulamos para as meias-idades dos pais, noutras experimentamos o sonho ansioso de Rhoda, para depois regressarmos à rebeldia adolescente de Mark. E o livro transita de alma velha para alma jovem, dando-nos todas as pistas de como se moverão estas pernas que parecem não vir de um corpo. Mas não me quero alongar na descrição das personagens porque também não é algo com que Vann perca tempo. Penso que a personagem principal é, sobretudo, o silêncio, e as suas lutas. E se há um pedido de desculpas que não é ouvido, ou uma cabana que se ergue apenas por obsessão de Gary, é porque aqui as coisas inanimadas parecem ter mais vida do que as próprias pessoas.
Numa rotina de mortes precoces, os leitores mergulham na natureza amarga, nos seus homens excessivamente solitários, e num Alasca que nos encolhe só por ser tão vasto. “A Ilha de Caribou” é um livro de lugares e não de pessoas. Lugares frios, de invernos demasiado escuros, em que David Vann não nos aconchega com calor ou palavras açucaradas. Bruta e implacável, a narrativa prendeu-me pela única questão que tinha por resolver: conseguirão estas personagens sobreviver a uma solidão tão terrível?
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.tumblr.com