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Carta para o Pai Natal

Esferorragia

Meu caro

Fez por estes dias 40 anos que te escrevi pela última vez, andava então na 2ª classe da escola primária e tudo o que eu queria que me deixasses na chaminé era uma espingarda que disparava rolhas capazes de atingir a vertiginosa distância do comprimento do meu quarto, uma bola de futebol de couro igual ás dos jogadores e um comboio eléctrico nem que fosse daqueles só com uma máquina e duas carruagens e que andavam simplesmente à roda num interminável círculo de meio metro de diâmetro que o resto inventava eu. Não falhaste e ainda hoje te agradeço esses brinquedos.

O tempo passou e voltou a passar e como ultimamente tenho vindo a acreditar cada vez menos nos homens ( e nas mulheres ) principalmente nos portugueses apesar dos louváveis e pungentes apelos do Dr. Sampaio e cada vez mais em ti venho de novo recorrer á tua desinteressada e bondosa prestação numa desesperada tentativa de ver realizados alguns sonhos eminentemente ligados à minha área profissional que de espingardas, bolas e comboios eléctricos felizmente estou bem servido.

Gostaria antes de mais de ter um Centro de Saúde novo, não digo com luxos mas pelo menos com : os corredores aquecidos no Inverno e refrescados no verão ; água quente nos lavatórios das casas de banho e consultórios (nem pensar em lavar as mãos antes de observar um recém nascido no Inverno porque o risco de enfiar uma pneumonia na pobre criança é quase total e no fim da consulta também não porque precisamos de pelo menos 5 minutos de exposição manual ao irradiador para recuperar os movimentos dos dedos) ; suporte informático para registo das consultas acabando de vez com os arqueológicos processos clínicos em papel onde de resto se escreve cada vez menos e com potencialidade de execução electrónica dos procedimentos burocráticos mais banais ( pedido de exames, receitas, baixas, etc. ) ganhando imenso tempo para atender de facto as pessoas, com acesso à Internet para pesquisa imediata acerca de qualquer assunto e em rede com o hospital ( a partilha de informação clínica permanente seria promotora da responsabilização, geradora de consensos práticos e indutora de qualidade mas acho que já estou a pedir demais…),além de que acabava de vez com a “letra de médico” e decorrente esforço de descodificação ; paredes, tetos, soalhos, portas e janelas em bons materiais e bonitinhos, criando um espaço arejado e aprazível onde todos os que lá trabalham e que o utilizam se sentissem bem e não o cinzentismo bolorento de “caixa”.

Porque meu caro Pai Natal, entristece-me assistir ao mediatismo que tem sido dado á problemática do “novo Hospital da Guarda” apesar da sua pertinência e inquestionável importância e ser relegada a menor condição uma instituição onde trabalham diariamente 60 pessoas, procurada diariamente por cerca de 500 outras para diversos efeitos e onde se realizam anualmente qualquer coisa como 60 000 consultas médicas. Bem sei que toda a gente acha que se salvou por ter sido operada e ninguém pensa o mesmo por ter tido a sua tensão arterial controlada durante anos, ou a sua diabetes, ou ambas as coisas, ou muito mais do que isso, mas a nossa cultura continua teimosamente hospitalocêntrica. Gostaria também de te pedir uma cafeteira eléctrica para fazer o cházinho das 11 e assim evitar o recurso ao micro-ondas que está naquela divisão lá em cima onde as enfermeiras têm os cacifos e que é utilizada também para o “coffe-breack” à falta de melhor.

E para já no que diz respeito ao Centro de Saúde ficaria por aqui não sem antes te pedir que não deixes que o vendam ao desbarato a qualquer entidade com dinheiro que se mostre interessada no negócio.

Para além disto gostaria que inspirasses quem manda ( uns e outros estás a perceber?) nesta terra para de uma vez (ou por uma vez ao menos) deixarem as guerras de alecrim e manjerona e de uma forma responsável e transparente discutirem com realismo os problemas da saúde que a todos interessam, Hospital novo incluído se bem que este pedido me pareça um tanto mais difícil do que arranjar a cafeteira eléctrica.

Como vês contento-me com pouco e que diabo ( cruzes canhoto ) ao fim de 40 anos sem nada te pedir já mereço qualquer coisinha.

Por: Vasco Queiroz

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