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Carta aberta a um irmão

Vidas

Não me lembro de ti na barriga da nossa mãe, mas lembro-me bem do dia em que nasceste.

Era Verão, nós de férias na casa dos avós (onde, ao pequeno almoço, eram servidas sopas de cavalo cansado – facto que a mãe só veio a saber mais tarde, indignada e com as mãos na cabeça – mas que nós adorávamos!!) .

O pai chegou e nós numa correria para os seus braços enquanto ele nos dizia (a mim e à nossa irmã) é um rapaz, chama-se Pedro.

Lembro-me de seres um bebé gordo e chato que só adormecias com o rádio ligado.

Lembro-me das tareias que levámos da mãe por tua causa (ela era um bocado nervosa) quando desaparecias, tinhas 3 ou 4 anos e escondias-te nos sítios mais improváveis! E eram lágrimas e desespero dos pais e vizinhos que te procuravam num verdadeiro jogo de escondidas. Até que resolvias aparecer para alívio de todos e, apesar de também levares umas palmadas, passados uns tempos resolvias “jogar” novamente. Eras peste, lembras-te? E herdaste os nervos da mãe. Lembro-me de nos tentares bater com martelos e cadeiras viradas ao contrário!

Lembro-me de te levar à creche e dizeres que querias casar com a tua educadora – já eras um romântico!

Lembro-me de te terem acusado de roubares uma bola e tu, a chorares, que não tinhas sido tu, e eu enxugar-te as lágrimas, dar-te a mão e dizer-te para não teres medo que ninguém te ia bater porque eu estava ali. E eu: «Se ele diz que não foi ele é porque não foi!» – em resposta a um pai acusador. E não tinhas sido tu, nunca foste “ladrão”.

Lembro-me ainda de nos rirmos até às lágrimas, nós, as três mulheres lá de casa, quando líamos as cartas das tuas namoradas que deixavas à nossa vista em cima da mesinha de cabeceira. A mãe dizia que se as deixavas lá era para nós lermos e a mãe ainda corrigia com esferográfica vermelha os erros! São memórias magníficas tens que concordar.

Lembro-me de me tentares ensinar a andar de mota e estares mais preocupado com a dita do que comigo. Mas até nem me safava mal, ora lembra-te lá bem.

Lembro-me de uma madrugada assustadora de chuva e trovoada, o telefone a tocar e a notícia do teu acidente. Lembro-me de receber o teu abraço apertado no hospital, de medo, alívio e amor.

Lembro-me do dia em que casaste numa serenidade feliz.

Lembro-me do dia em que orgulhosamente te exibiste como pai e como manténs esse orgulho até hoje.

Lembro-me de tardiamente entrares para a faculdade para realizares um sonho antigo, aperfeiçoares um dom que nasceu contigo. Tens uma sobrinha que sai a ti.

E agora não vou esquecer o dia em que tomaste a decisão “forçada” de partires. Vou lembra-me que o nosso país não te deu a oportunidade que merecias. Vou lembrar-me que te abriram a porta de saída, dizem que lá fora é que terás o teu lugar. “Troika”, austeridade e crise têm agora um significado mais pessoal.

Vou lembrar-me do corajoso que és e do HOMEM que te tornaste porque vais sem dramas e muito confiante no teu futuro.

Nunca me vou esquecer de tudo isto e vou lembrar-me de muitas outras coisas que não “cabem” numa carta aberta.

Vou lembrar-me sempre de ti.

Por: Carla Freire

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