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Brumário

1. Leio um artigo de opinião, no jornal “O Ribatejo”, intitulado “Verão 1975 e Verão 2017: Os Terrorismos que Temos”, (http://bit.ly/2yI0IsJ). Quem aprecia teorias da conspiração, não pode ignorar este texto. Está lá tudo o que é preciso saber deste género de delírios. Este versa sobre a calamidade do passado domingo. E que já vi replicados por alguns “baluartes morais” da praça. Ora, sabemos que o autor é adepto da “esquerda total”. E começa por nos dar uma lição de história sobre a destruição de algumas sedes do PCP e do MDP durante o PREC. Estabelecendo depois um eloquente paralelismo com as 500 ignições de domingo. Obra do CDS, dos lacaios do FMI e dos epígonos do Cónego Melo, pois claro! E a coisa parou por aí! Não chegou à parte do incêndio do Reichstag, em 1933, ao grande incêndio de Londres no séc. XVII, ou, vá lá, Roma a arder para deleite do melómano Nero. Porém, o autor não se fica pelas meias palavras, apontado o dedo sem hesitação: «Não seriam apenas os fascistas do PNR e outros não identificados acólitos, que poderiam de pôr em prática um qualquer plano destinado a ter as consequências que estes incêndios tiveram em termos políticos». Esclarecendo ainda que «há gente cujos escrúpulos não passam por ter qualquer tipo de contenção, no que respeita à preservação de vidas ou de bens, desde que os seus objetivos possam ser alcançados». Ou seja, num português confuso, o autor não tem qualquer dúvida sobre as intenções e a autoria dos incêndios. Mas sem que se lhe oiça uma palavra de consternação pelos mortos, ou de solidariedade para com as famílias e os lesados. Zero. A insensibilidade é assim um exclusivo dos tenebrosos agentes da direita e extrema direita! Conclui a sumidade, em modo de tribunal popular, que «Isso passou-se em 1975 e, salvo prova em contrário, ter-se-á passado em outubro de 2017. Está lá tudo: desespero, motivo, oportunidade e resultado». Fantástico, não acham? Nos “julgamentos” promovidos por Estaline não se diria melhor. Faltam ainda 2 “pormenores”. O autor transforma uma simples conclusão demencial em acusação, ainda que sem quaisquer indícios. Sustentada unicamente em fantasias, a que chama «desespero, motivo, oportunidade e resultado». Ou seja, aplica aqui a chamada responsabilidade objectiva, proibida pela CRP. Mais vai mais além. A infalibilidade da sua tese só poderá ser desmentida mediante prova em contrário. Ou seja, o escriba, sem qualquer rebuço, faz uso de outra prática interdita no direito penal: a inversão do ónus da prova. Traduzido por miúdos, acontece se for o acusado a demonstrar que não praticou um crime, em vez de ser a acusador a ter que provar que o praticou! Voltemos ao que interessa. Todos têm um naipe de culpados a la carte para a calamidade que assolou o nosso país. Para os apaniguados da geringonça, são as alterações climáticas, a falta de “resiliência” e a imprevidência das populações. Para o ex-sec. estado da AI, há mãozinha criminosa aproveitando-se da escassa “proactividade” da mesma população. Por sua vez, o inenarrável presidente da Associação de Bombeiros até sabe quem são os terroristas, esses “malandros”, mas nunca apresenta provas. Para os que só aparecem nos funerais, a culpa vai inteirinha para a defunta ministra. Para a defunta ministra, a culpa é de uma série de aborrecimentos que lhe roubaram as férias. Para Costa, a culpa é das trovoadas secas e da originalidade dos fogos deflagrarem fora da época pré-definida. Para os saudosos das grandoladas, a culpa é do Passos e da Cristas, que semearam o território com eucaliptais. Para os urbanitas esclarecidos, mas que votaram no Isaltino e ficaram sem a casinha de férias no “interior”, a culpa é da falta de limpeza das matas. Para alguns comentadores encartados, a culpa é do “êxodo rural”. Para alguns cómicos, a culpa é “de todos nós”. Ou seja, de ninguém. E se for de alguém, Deus há-de perdoar tal pecado. Francamente, não sei por onde escolher, diante de tão apetitoso cardápio. Quer-me, no entanto, parecer que, embora havendo culpados, não é essa culpa que explica tudo. Só explica o nexo de causalidade e de imputabilidade no plano imediato. Tudo o resto é – preparem-se para o palavrão new age –retribuição karmica. Com três vértices identificáveis: florestação irresponsável, que dura há pelo menos cem anos, pela extensão e espécies escolhidas; desocupação da paisagem e abandono da silvicultura, a que corresponde a propagação descontrolada da matéria combustível; políticas públicas permeáveis aos lóbis dos incêndios, ao descurarem a prevenção e a vigilância, privilegiando a concentração de recursos no combate aos incêndios, mas sem uma resposta integrada e célere no terreno.

2. É extraordinário como, embora demos de barato as nossas previsões, se elas falham, é quase sempre por falta de oportunidade e não por erro de cálculo. Se ela surge, nada a fazer, pois vale como uma profecia que se realizou. Todos nós sabemos bem que é nos momentos em que mais vigorosamente desafiamos as nossas circunstâncias que mais rarefeita se torna a presença de quem julgávamos por perto. Mas parece que há sempre uma secreta esperança de que possa não ser bem assim. Que as fatídicas qualidades do género humano se anunciem e quebrem a nossa descrença. Que alguém destape o mel e nos ponha a dançar com os anjos. Que deixemos a margem povoada de lenços brancos. Mesmo que, na outra banda, ninguém, nada, nada de todo nos acene. É como se esperássemos que, do outro lado da porta, alguém batesse. Suspensos desse fio débil, desse poder elementar, dessa mistura de melancolia e humor que nos guia pelos escolhos da matéria em desordem. É então que abrimos a porta e desfazemos a profecia. Lá fora, intacto, o bosque consagrado.

Por: António Godinho Gil

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