A questão tem sido formulada muitas vezes: se, por um lado, o PCP iniciar a sua profunda e necessária transformação, o seu destino será a social-democracia e, assim, dirá adeus à sua identidade específica; se, por outro lado, não proceder rapidamente a um profundo “aggiornamento” então só lhe restará definhar inexoravelmente. Não será, pois, fácil a este partido traçar um percurso que lhe garanta ao mesmo tempo influência política na sociedade moderna e uma clara identidade político-ideal. A derrocada dos sistemas socialistas ao mesmo tempo que determinou uma fronteira inultrapassável não deixou vestígios ou marcas ancestrais por onde retomar a recta via. Pelo contrário, ela veio suscitar fortíssimas derivas de tipo neoliberal, vista a falta de sedimentação histórica daqueles sistemas.
Como poderá o PCP “aggiornarsi” sem perder a identidade? Esta é que é a verdadeira questão. Mas ela é, por isso mesmo, uma grande questão. Uma questão tão radical que não deixará de ter consequências estruturais sobre o próprio eixo identitário deste partido.
Em primeiro lugar, a sua base social de apoio conheceu tão profundas transformações que se poderá perguntar se ainda é a mesma. A robótica industrial – em geral, o triunfo da micro-electrónica – tem vindo a desmantelar as grandes concentrações operárias. É por isso que hoje se fala de sociedade pós-industrial. A revolução urbana e os novos sistemas de comunicação vieram romper com o que restava da presença comunitária nas sociedades modernas. É também por isso que hoje se fala de sociedade pós-moderna, isto é, do fim de uma sociedade onde se iniciara precisamente o desmantelamento da civilização comunitária. A expansão universal do consumo, facilitado, cada vez mais, pelos novos e sofisticados sistemas de crédito, veio alterar profundamente os estilos de vida das classes economicamente subalternas, produzindo uma profunda revolução na constituição das suas identidades. O triunfo das chamadas indústrias culturais produziu, finalmente, uma transformação qualitativa na aproximação às formas convencionais de cultura.
Tudo isto veio alterar o campo social onde intervinha politicamente o partido comunista. Por isso, a pergunta seguinte é esta: o que fez o PCP para se adaptar a estas profundas mutações? Não creio que tenha feito muito, para além de algum (excelente) trabalho no campo da comunicação e marketing. O trabalho de reconhecimento da real textura da «sociedade civil», a assunção da autonomia funcional da «sociedade civil» em relação à «sociedade política», a superação de experiências teóricas tão datadas como a do marxismo-leninismo e o esforço de reconstrução de uma teoria crítica da sociedade, a «digestão» crítica dos novos dados emergentes da globalização, sem os ler em chave puramente anti-imperialista – nada disto foi feito convenientemente.
A escolha de Jerónimo de Sousa parece, aliás, de facto, querer significar simbolicamente que nada disto foi feito, nem nada virá a sê-lo. Esta escolha parece vir a representar o fim lógico de um atormentado percurso que conheceu saídas e afastamentos de inúmeros e ilustres militantes deste partido. Isto é, parece significar a opção definitiva pela segunda das opções que formulei no início desta reflexão: a reafirmação obsessiva de uma identidade inalterada e inalterável.
Esta opção tem, contudo uma virtude: uma clara separação de águas. Uma clareza decisiva na opção de fundo deste partido. De hoje em diante, fica-se a saber que o PCP será como sempre foi, mesmo que corra o risco de se tornar um partido residual. Esta é, pelo menos, a opção de quem hoje detém o poder neste partido.
No campo da esquerda, a inovação é deixada quer ao PS quer a um Bloco de Esquerda que, cada vez mais, vai ocupando o terreno que era do PCP. Cabe a estes dois partidos interpretarem politicamente os grandes temas fracturantes da sociedade moderna. Caberia ao PCP garantir a solidez da utopia, a força tranquila da permanente oposição aos poderes instalados e a defesa intransigente do templo sagrado onde residem os supremos ideais da Igualdade e da Fraternidade. Seriam estes os valores que, entretanto, concederiam ao PCP, como organização terrena e humana que é, algumas liberdades no estrito campo da pragmática política: alianças contra-natura, desvios de discurso em relação ao inimigo principal, fraternal intolerância. Quando a pureza dos princípios exige o sacrifício de quem a pode mais directamente ameaçar.
Com Jerónimo de Sousa o PCP faz aquela operação que a expressão inglesa “Back to the Basics” tão bem consegue traduzir. Regresso às coisas simples, depois de tantos tormentos ter passado nessa longa viagem pelos difíceis e subtis caminhos da democracia, com outros tantos combatentes que tombaram no árduo caminho da virtude política, vítimas da insídia capitalista. “Back to the Basics” parece ser a verdadeira mensagem deste PCP de Jerónimo de Sousa.
Por: João de Almeida Santos