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Ay nós coitados

Selecção Natural

A Guarda é uma das cidades portuguesas com melhores condições naturais para ser “vendida” como um sítio apelativo. Pela sua especificidade, pela memória, pelo património natural e edificado, pela posição estratégica, pelas capacidades instaladas, pela condição de finis terra. Matéria consensual, segundo creio.

Recentemente, fiquei a saber que a Câmara Municipal, através da Vereadora do Turismo – logo colocada em alta na comunicação social local sem se saber muito bem porquê – veio anunciar uma série de intenções avulsas no domínio do marketing, englobadas num programa de promoção turística da cidade.

Após ter colocado um aparelho para surdos e uns óculos para ver em 3D, utensílios que os guardenses costumam envergar quando deparam com, ou ouvem falar um político local – invariavelmente recrutado na III Divisão política e cívica, com algumas honrosas excepções, é certo… – percebi que a autarca tinha mandado imprimir umas T Shirts com a célebre cantiga de amigo atribuída a D. Sancho, exaltando os seus amores pela judia Ribeirinha. Fiquei mais descansado. Pensei que a inscrição dizia respeito às inúmeras mulheres desempregadas ou vítimas de maus-tratos domésticos que, no concelho, naturalmente vivem en gran cuidado pelo seu futuro ou pelo seu benemérito “amigo”. Mas, no amor, todos os cuidados são poucos, ou então, deliciosamente risíveis, como se sabe.

A Vereadora, num impulso digno de nota, corre para “vender” a imagem da Guarda ao exterior. Não obstante, antes de qualquer planeamento, antes de qualquer estratégia a seguir, é fundamental que o debate se alargue e nele participem e dêem o seu contributo o maior número de cidadãos, empresas e instituições, guardenses ou não.

Ora, o critério decisivo a preencher nesta questão será o de responder a duas simples perguntas: quais as vantagens comparadas com que a Guarda se pode afirmar junto do público, isto é, que produtos irão integrar a “marca” Guarda? Qual a imagem distintiva que irá dar-lhe visibilidade, poder de atracção? Para responder a essas questões, proponho um exercício prévio. Sem pensarem muito, respondam sem medo e honestamente ao seguinte: o que tem realmente a Guarda para oferecer? Pensem bem antes de responder. Pensem no que vos levaria a deslocar muitos kilómetros para visitar uma cidade em muitos aspectos atrasada e provinciana no pior sentido possível. Pensem bem. Seriam os versos do Rei Povoador? Seria a magnitude incompreendida e ignorada da Sé? Seria uma restauração medíocre, com duas ou três excepções dignas de nota? Seria uma vida nocturna em ascensão, mas com uma oferta pouco segmentada e onde a música difundida é de uma previsibilidade bocejante? Seria a observação in loco do homem beirão, um Sísifo voluntário, como disse Miguel Torga, que ambiciona o poder e o mando, truísmo já assinalado por Gil Vicente – olhai vós bem que este sam eu, diz o Juiz da Beira. Nada de confusões ou familiaridades apressadas, portanto – características temperadas, valha a verdade, por um irredutível desejo de liberdade e sua defesa, ou por uma radical mundividência? Seria um comércio que não se modernizou, desajustado à procura e com preços incrivelmente altos? Seria o apelo da montanha, a piedosa grandeza do granito, a limpidez do ar, um paradigma que já foi medicinal mas que agora poderá ser de um inconformado meneio espiritual, ou de um irrequieta pulsão desportiva? Seria a mais que razoável oferta cultural, no entanto desacompanhada de soluções urbanísticas que a prolonguem e potencializem? Seria para simplesmente ver confirmado o insólito: não existe, numa cidade de montanha, um único circuito pedonal na zona envolvente, ou sequer uma ciclovia, nem uma programação pública e regular de actividades que promovam a ligação e a descoberta do património natural? Seria a crua imagem de uma terra ingrata e austera, quase imóvel, mas onde a naturalidade ainda pesa mais do que o artifício? Seria a louca e pueril persistência dos que decidiram ficar, certificando-se no espelho de que o seu encontro com a cidade não foi uma ilusão, e cuja puerilidade alucinada se transformou numa espécie de mistério, poeira oculta, movimento encerrado num espaço sem tempo?

Tantas perguntas, senhora Vereadora! Que tardam, e non vemos. Mas o seu ar sorridente, televisivo e asséptico, envergando a singular T shirt decerto vendida na inenarrável Loja do Concelho, seguramente já respondeu às minhas. Teme-se o pior.

Por: António Godinho

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