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Atlas

Olho para trás e vejo-me sentado com um atlas na mão. As horas passavam e eu procurava, nos mapas, continentes e oceanos, países e cidades. Ali ficava a ver a proximidade e a distância, a vastidão e a estreiteza, a altura e o abismo. Com o dedo, percorria pampas e cordilheiras, mares e desertos, florestas e estepes, selvas e savanas. Então havia nomes que me diziam o mundo: Mediterrâneo, Mar Morto, Nova Iorque, Sara, Meridiano de Greenwich, Paris, Alpes, Círculo Polar Árctico, Veneza, Paralelo 38, São Petersburgo. Alguns faziam-me viajar: Taiti, Lima, Lassa, Genebra, Rio de Janeiro, Praga, Tóquio. Com outros, sonhava: Persépolis, Stratford-upon-Avon, Himalaias, Florença, Salzburgo, Sils Maria. Fitava a história das civilizações e dos impérios: as conquistas e as derrotas, as rupturas e as continuidades, as fusões e as cisões. Olhava o império de Carlos Magno, o de Carlos V, o de Napoleão. Procurava a velha Babilónia e a mítica Tróia. Saltava dos mapas físicos para os políticos e para os históricos. Viajava naquelas páginas que me davam a sensação de extensão, aventura, domínio, fuga, poder. Ao alcance da mão, tinha templos e ruínas, arranha-céus e auto-estradas, cidades e lagos, vulcões e rochedos. Adivinhava tornados e monções, ciclones e maremotos. Sentia frio e calor, espanto e vertigem, medo e comoção, êxtase e assombro, euforia e cansaço. Via o visível e o invisível. Mudava de página e saltava de continente. Sempre me fascinou o sistema de correspondências, símbolos, relações, escalas, representações, marcadores, quadrículas, redes e classificações que todo o mapa subentende: a minha ideia do mundo é inseparável desta exactidão variada. E a minha noção de cultura está ligada a este artifício real.

Nesse tempo em que o Universo me esperava, coleccionava instrumentos de óptica que me faziam viajar. Tinha lentes, periscópios, microscópios, telescópios. Passava dias a ver micróbios e astros. Ser jovem é desejar partir. Envelhecer é querer ficar. Com a lupa sobre o mapa, procurava a cidade de Odessa, onde nasceu Anna Akhmatova, e a de Alexandria, onde morreu Cleópatra. Seguia o curso do Nilo para encontrar os templos de Luxor. Buscava a Floresta Negra e a cabana de Heidegger, ou o Atlântico Norte e os restos afundados do “Titanic”. Encontrava a savana africana e os animais que rugem; a floresta brasileira, onde as aves gritam; a pradaria americana, que treme à passagem dos cavalos.

Com um mapa à frente, eu seguia o meu pai, que era marinheiro: viajava pelo Oriente e pelo Ocidente, ia ao Norte e ao Sul. Era Marco Polo e Vasco da Gama, Tintim e Sandokan, Corto Maltese e Francis Drake, Astérix e Fernão Mendes Pinto. Também Rimbaud, Loti, Gauguin, Stevenson, Isabelle Eberhardt, Conrad, Artaud. E Alexandre Magno, Colombo, Fernão de Magalhães, padre António de Andrade, Gago Coutinho, Neil Armstrong.

Tenho saudades desses dias sem noite, quando hoje repito o gesto fiel e lento de abrir o planisfério ou de fazer rodar o globo. Agora, não fico apenas a imaginar lugares para ir. Lembro também aqueles onde fui. Viajo, paro, avanço, perco-me, divago, chego. Acordado, sonho um rio sem margens, um céu sem nuvens, um mar sem vagas, uma terra sem fronteiras. E um Eu sem exílio.

Por: José Manuel dos Santos

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