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As sandálias do pecador

observatório de ornitorrincos

Vem este artigo a propósito do exemplo que Miguel deu quando assinou contrato com o Valência e pediu desculpas a todos os benfiquistas por ter saído do clube. Apesar de Dias Ferreira não ser meu advogado, também eu julgo dever desculpas públicas a diversas pessoas por ter saído da casca. Ao director do jornal, por me reservar uma página todas as semanas, a todos os leitores que têm de padecer com a leitura de um observatório inútil (os ornitorrincos só existem realmente no hemisfério Sul), à minha mãe por não a ter visitado nas férias, a Deus por não acreditar que existe, a D. Sebastião pela minha ausência na batalha de Alcácer-Quibir e a António Matos Godinho por criticar o Bloco de Esquerda e reparar em incongruências curiosas em assuntos reservados a gente grave e digna.

Desta vez o abuso, devo reconhecer, foi excessivo. O Observatório de Ornitorrincos sempre pretendeu ser um espaço de reflexão onde não se brincasse com assuntos sérios. O humor nunca foi desígnio desta coluna. Nem por um momento me passou pela cabeça gracejar fosse com o que fosse. No entanto, António Matos Godinho foi sempre benevolente quando neste espaço se utilizou a piadola fácil e sem gosto para criticar primeiros-ministros e presidentes da república, escritores e figuras públicas, o povo em geral e hierarquias de religiões várias. Atravessei desta vez, e por isso me condeno, a linha inultrapassável. No Bloco de Esquerda, principalmente nas secções da Beira Interior, estava – e eu sabia-o – proibido de tocar. Os candidatos do Bloco de Esquerda são tema tabu. Matos Godinho tem toda a razão. O senhor candidato à Assembleia Municipal da Covilhã tem todo o direito de ser empresário e ao mesmo tempo concorrer por um partido anti-capitalista. Ninguém tem nada a ver com isso. Também eu sou professor de Sociologia e não gosto de Pierre Bourdieu. Devia aprender com as minhas próprias contradições. Godinho terá razão: a liberdade e a democracia são perigosas. Num país socialista, eu estaria domesticado e não haveria piadas de mau gosto.

É verdade também que o Observatório vive incessantemente sem assunto. Não foi só naquela semana, é em todas desde o seu início. Aliás, desde o início da minha colaboração com O Interior que escrevo sempre sobre nada. Obviamente que não com o êxito com que Seinfeld fez uma série de televisão. Além disso, faço-o de forma desinteressante. Pelo que consta, é a fotografia com o cabelo ao vento que favorece o grafismo da última página e mantém a existência da coluna. A crónica falta de assunto é um problema típico de um colunista que não trabalha em hospitais e não conhece todas as tricas sobre direcções clínicas e problemas internos dos corredores da medicina para sobre isso poder escrever todas as semanas. Nunca assim assunto me faltaria. Quero também desculpar-me perante o Bloco de Esquerda e seus militantes e outras instituições santificadas que tenha já algum dia desconsiderado. Não sou habilidoso com as graçolas sobre candidatos como o venerável companheiro colunista de O Interior o é com o insulto chistoso sobre colegas de profissão, trabalho ou jornal.

Espero que as minhas desculpas sejam aceites como Luís Filipe Vieira as aceitou a troco de oito milhões de euros. Se não forem, que a minha existência terrena se dê sem sobressaltos de maior. Aceito mesmo que Matos Godinho se refira a mim como Vasco Pulido Valente o fez sobre Miguel Portas e que, apesar de nunca nos termos falado, nunca mais o faça. Se eu votasse na Guarda, prometo solenemente que como forma de público e civil retracto colocaria uma cruz no boletim para a Assembleia Municipal à frente do símbolo do Bloco de Esquerda, para que o cronista não tivesse de ler – e sofrer com – os meus artigos em busca de assunto. Aposto que um deputado municipal teria inúmeros factos para narrar sobre as sessões e os leitores de O Interior só teriam de gratular. E como eu próprio sou também um ser paradoxal, para a Câmara Municipal votaria na lista do CDS-PP.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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