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As narrativas da crise

Theatrum Mundi

Agora que uma parte substancial da direita portuguesa se revoltou contra os mercados financeiros, governo e presidente incluídos, vale a pena prestar atenção às narrativas da crise e tentar perceber de que forma elas continuam a constituir um elemento central na legitimação da ação política e na luta entre governo e oposições. Em grande parte, aquilo que a crise realmente é depende da história que se conta dela e da arqueologia e genealogia que se faz das suas causas. Por isso mesmo, as questões mais recorrentes no discurso político até às eleições de cinco de Junho foram as de saber “Como se chegou até aqui?”, “Que cadeia de decisões e fatores externos explicam ou ajudam a compreender a crise?” e “Que grau de consciência política caraterizou os atores políticos durante o processo?”

Enquanto primeiro-ministro e secretário-geral do PS, José Sócrates preocupou-se em insistir que a crise se deveu a fatores exógenos ao país e às próprias opções políticas do seu governo. Mais ainda, e recorrendo à dimensão global, o argumento encerrava a lógica de que a crise colocava desafios graves à estabilidade do euro, da zona euro e mesmo à continuação do projeto europeu. Na narrativa da crise manipulada por José Sócrates (e isto porque uma narrativa é sempre uma manipulação dos fatos e da realidade, por quem quer que produza uma), o governo do PS carregava o fardo pesado da defesa do euro e da Europa, e só a solidariedade dos sócios europeus para com os países periféricos e a coesão nacional permitiram ultrapassar as dificuldades. Ao mesmo tempo, e procurando não perder terreno face às narrativas produzidas mais à esquerda, o PS lá ia arremetendo contra os mercados, especialmente contra as agências de notação financeira, transformando-os na cara mais visível dos interesses especulativos anti-Europa e anti-euro quando aquelas começaram a baixar a nota da dívida da República e a apostar numa eventual bancarrota. Sócrates via o seu governo e as suas políticas como baluarte da defesa dos interesses nacionais no meio de uma crise europeia cujo elo mais fraco passara entretanto a ser Portugal. A manipulação tornou-se evidente quando, no espaço de poucas semanas, o argumento passou de ser utilizado para justificar a recusa da ajuda externa do FMI/UE a justificar essa mesma ajuda.

Enquanto isto, a oposição à direita produzia a sua própria narrativa da crise, quase que indiferente ao fato de um dia regressar ao governo e ser confrontada com uma nova perspetiva da realidade. Onde Sócrates só via fatores exógenos e crise global, PSD e CDS só viam políticas erradas e incapacidade de produzir mudanças estruturais. Quando o PS começou a arremeter contra especuladores e agências de notação, os mais liberais e o presidente Cavaco Silva lembraram que era escusado criticar a ‘neutralidade dos mercados’ que ‘sabem bem o que se cá passa’ e antes acatar os seus ditames teleológicos. Se ao menos Portugal voltasse a ser o aluno exemplar da Europa dos anos 80 e 90 (esse mesmo que condenou a agricultura e pescas e restante produção nacional de acordo com a lógica circular inerente à narrativa do aluno exemplar da Europa). Se algum programa o programa de governo do PSD tem é esse regresso à narrativa de Portugal-aluno-exemplar-da-Europa-que-há-de-resolver-todos-os-problemas-nacionais. A determinação de Passos Coelho tem relação direta com esta ilusão, e assim se justifica que quisesse ser mais troikista que a troika e antecipar resultados para impressionar a Europa (à custa do clássico aumento de impostos).

E só assim é possível compreender que tenha recebido a decisão da Moody’s de atirar para o lixo a dívida portuguesa como um ‘murro no estômago’. De repente, a onda de choque da decisão da Moody’s transformou muitos liberais em críticos da cegueira dos mercados, e a sua narrativa da crise passou a ser povoada de fatores exógenos e teorias da conspiração contra o euro, em que Portugal é utilizado como mero instrumento do ataque à Grécia, e depois a toda a Europa, por insaciáveis especuladores financeiros. De tal forma que a panaceia parece agora ser para muitos a criação de agências europeias de notação, tão ‘neutrais’ como o próprio mercado, claro, e já agora benevolentes para com os desmandos de governação de quem nos trouxe até aqui e que quem nos governar no futuro será tentado, mais tarde ou mais cedo, a repetir.

Por: Marcos Farias Ferreira

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