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Animais como nós

Tresler

“Comer cão seria quase como comer um amigo.”

(Ana Paula Vitorino, Sol, 18 Fev. 2011)

1. As leituras fazem-se por oportunidades. As Comemorações da República, uma edição local a propósito de um autor homenageado, o centenário de Darwin, foram pretextos bons para ler e ficar com vontade de ler mais. Às vezes uma Feira do Livro encerra dentro de si a oportunidade de uma surpresa barata, como aconteceu há dias ao cimo das escadas do Vivaci. Outras vezes é uma exposição que se visita e cuja memória se quer preservar ou ampliar, por exemplo uma das exposições da República. Ocasião também para ficar com livros na prateleira, à espera de tempo para serem lidos.

O ideal seria ler o que nos vem à vontade e ler sobretudo a propósito de qualquer coisa e nos dias/semanas a seguir à irrupção dessa vontade. Ter muitos livros em lista de espera pode ser desesperante e frustrante, quando eles estão ali ao lado e o tempo não sobra. Mesmo quando as oportunidades nos aconselham a compra, depois eles ali ficam na estante a olhar para nós, alguns ainda embrulhados no celofane da expectativa.

Seguir os interesses, estar atento aos caminhos que se abrem, por exemplo a propósito do gosto por cães ou do gosto de ter um cão, levou-me a aproveitar a oportunidade de ler “Coração sem abrigo” de José Jorge Letria.

2. Os cães são, pela sua condição de domésticos, muito dependentes do homem e por isso alvo das posições mais opostas. Abundam aqueles que os criticam em relação à liberdade que não se importam de perder se tiverem à beira a subsistência. Vemos todos os dias cães que passam todo o santo dia fechados, presos e com um campo de ação diminuto. E que, mesmo assim, dão ao rabo quando vêm o dono, mesmo que ele a seguir lhes dê dois pontapés. Resignados e lambe-botas, assim são vistos por alguns.

Outros acham no entanto incomparável a veneração do cão pelo homem, sobretudo quando vemos a que crápulas ou energúmenos eles aceitam ligar-se. É de admirar como eles aceitam ser a companhia de pessoas a quem não pedem pedigree ou de pessoas, como neste romance-diário de J. J. Letria, que entretanto atravessaram a ponte para o outro lado da vida “normal”, o lado em que não se tem bilhete de identidade. Um “labrador” a acompanhar todos os dias um sem-abrigo só pode ser lisonjeador de uma posição, de uma atitude do cão. Ou desencadear as reações “normais”: onde é que este miserável foi roubar o cão? Ou: é preciso tirar este cão a este miserável – o infeliz deve passar barrigadas de fome.

A nossa posição diante dum cão fragiliza-se ainda mais quando vemos um cão atropelado ou um cão perdido. Comenta Émile Zola na epígrafe do livro: “Porque será que ao ver um cão perdido atravessar uma das nossas tumultuosas ruas me estremece o coração? Porque será que ver esse animal ir e vir, farejando o mundo, assustado, desamparado por não encontrar o seu dono, me causa esta piedade tão cheia de angústia?”.

3.A minha vida sempre teve cães à volta. Por isso quase diria como Letria na dedicatória: “Obrigado cães pelo «desinteressado afeto» com que enchestes os dias da minha vida”. Creio que não seria capaz de abandonar um cão, que, enquanto vive connosco, se sujeita a todas as privações de liberdade e expressa todos os dias a sua fidelidade pela alegria de nos ver. Aos seis anos, lembro-me que assisti à morte à minha frente, na estrada, de um dos muitos “Mandavir” que tivemos, que não conseguiu resistir à vontade de saltar a uma qualquer borboleta na estrada de Pínzio, sem primeiro espreitar o carro que lá vinha. Lá o trouxe embrulhado na camisa, com o meu irmão, ambos lavados em lágrimas, para o enterrarmos “com dignidade” na Vinha da Quelha.

Cães-memória, cães que ladrais no bairro, cão lá em baixo no meu pátio já ansioso a aguardar a hora do passeio, vós sois os nossos corações sem abrigo.

(Coração sem abrigo, de José Jorge Letria, aparece na coleção Frente e Verso da revista Visão, ao preço de 50 cêntimos, numa coleção de sete livros de Prosa + Poesia, coleção que vale muito mais que o preço).

Por: Joaquim Igreja

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