Quando Amélia Quelhas nasceu há 102 anos, em Alfarazes (Guarda), a realidade da sua cidade era bem diferente. A mulher, que na passada quinta-feira celebrou mais um aniversário, nasceu em 1911, poucos meses após o início da República. Para ela, os problemas que agora assustam o país não existem porque não os conhece. «Já houve tempos muito difíceis», garante, embora acrescente que não vê televisão e não ouve «tão bem» como antes. As visitas, essas, preferem «recordar tempos felizes», admite a filha Alice.
Amélia Quelhas saiu de Alfarazes aos seis anos para os arredores da atual VICEG: «Andava muito todos os dias. Vendia leite na cidade e guardava ovelhas a alguns quilómetros dali. O meu pai costumava dizer que era capaz de fazer o trabalho como qualquer homem», recorda. As memórias de infância pertencem a uma outra vida, já fora do seu alcance: «Gostava de trabalhar, dançava, jogava à pela e fugia para os bailes», conta com um sorriso nos lábios. Contudo, há coisas que não lembra com a mesma facilidade e é a mais velha dos sete filhos que a ajuda: «Contou-nos que fazia renda quando ia com o rebanho e perdia a agulha várias vezes», adianta Alice Loureiro. Amélia casou com o primo Joaquim Bernardo Quelhas, militar da GNR, aos 26 anos, tendo acompanhado o marido para São Martinho de Mouros, Mangualde, Seia, Celorico da Beira, Freixedas, Fornos de Algodres e Vila Nova de Foz Côa.
Porém, a sua verdadeira «casa» é nas Lameirinhas, onde viveu grande parte da vida e onde residem também seis dos seus filhos (uma filha já faleceu). «Lembro-me muito bem do bairro ser só um conjunto de quintas. Eram conhecidas como as Quintas das Lameirinhas. Havia as hortas e pouco mais, com caminhos de terra», recorda. Devido à sua longevidade, quase toda a gente só a conheceu com cabelos brancos e de luto – o marido morreu em 1974: «Sei que já não se usa como antigamente, mas para mim continua a ser muito importante», considera. O que também não esquece foram as dificuldades que viveu. «Houve alturas de muita fome, de muita pobreza. Eu, como me ia aguentando, dava comida e emprestava dinheiro a quem me pedia», garante Amélia, para quem bastava haver confiança entre as pessoas.
É que a luta diária «era no campo e em casa, onde se trabalhava por uma vida melhor», afirma, dizendo que «as pessoas pagavam quando podiam, só um é que cuido que ainda me ficou a dever algum dinheiro». A centenária tem sete filhos, 14 netos e 19 bisnetos, que estão espalhados por todo o país, e ainda uma neta e duas bisnetas em Inglaterra. «Os meus trabalhos já estão feitos», diz Amélia Quelhas, que confessa sonhar em voltar a tratar a horta, onde não vai «há muitos anos».
«Mas ainda fiz renda até aos 98 anos», diz com orgulho. Agora, a sua maior preocupação é a família numerosa, pela qual pergunta em todas as visitas, quando a memória não a trai. Quanto a festejar o 103º aniversário, a senhora responde com um sorriso e uma fé inabalável: «Só Deus sabe».
Sara Quelhas