1. Houve tempos – na fase terminal do governo Guterres, depois no governo Barroso e a seguir no governo Santana Lopes – em que uns espíritos iluminados propuseram fazer atravessar o mapa de Portugal de TGV em todas as direcções. Sábios dos transportes discutiram animadamente se o plano do TGV devia ser em E, em T deitado ou em H tombado. Havia alfabeto e trajectos para todo o lado e todos os gostos: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, OTA e Lisboa-Madrid, Lisboa-Faro e até o extraordinário Faro-Huelva. Cautelarmente, escrevi umas coisas contra estes delírios, mas, no fundo de mim mesmo, nunca me preocupei muito, porque sempre confiei que alguém teria senso, assim que começassem a fazer contas. E esperava-se, obviamente, que fizessem contas.
Veio o governo Sócrates e o mergulho de cabeça no buraco da OTA obrigou a rever, correspondentemente, a grandiosidade ferroviária anunciada. Manteve-se o Porto-Lisboa, manteve-se o Lisboa-Madrid, e tudo o resto foi à vida. Mesmo assim, sobretudo em relação à linha Lisboa-Madrid, há dados que permanecem sem resposta. Por exemplo, e o mais importante: quem serão os passageiros da linha, visto que, nos estudos do governo para justificar a OTA, verificamos que nem um passageiro está previsto que passe a trocar o avião pelo comboio. Ou seja, ou o TGV é um fiasco total ou é um sucesso – mas, neste caso, grande parte dos argumentos sobre o esgotamento da Portela perdem razão de ser, visto que cerca de 11% do seu tráfego actual poderá, em condições normais, ser desviado para o TGV. Ou o governo se ‘esqueceu’ propositadamente do efeito do TGV nos estudos sobre a OTA, para melhor a impingir, ou o governo se prepara para se lançar numa gigantesca operação financeira ferroviária para a qual não prevê que haja passageiros.
Sem conhecer quaisquer estudos sobre o assunto, a minha previsão é que o Lisboa-Porto corresponde a uma necessidade evidente e que, bem gerida, pode ser uma linha rentável. Mas Madrid jamais o será. Tenho ouvido técnicos, governantes e até o primeiro-ministro dizerem, em tom científico, que “Portugal não pode ficar fora da rede europeia de alta velocidade”. E ponto final: ninguém lhes pergunta porquê, qual a razão por que não pode. Será uma questão de orgulho nacional, uma exigência de Bruxelas? Porque será que um país como a Suécia – imensamente mais rico, mais desenvolvido, com um sector exportador muito mais forte e até um território muito mais extenso – vive bem sem TGV e nós não?
Mas, enfim, por princípio há que acreditar que quem governa sabe o que está a fazer – até prova em contrário. Para meu espanto, porém, acabo de ler que o governo, através da secretária de Estado dos Transportes, anunciou que um bilhete Lisboa-Madrid no TGV vai custar 100 euros, um preço que ela afirma ser “altamente competitivo, sobretudo face à aviação comercial”. E o espanto deriva de três razões: primeiro, ficar a saber que o preço visa apenas garantir que a exploração da linha não será deficitária, mas não tem qualquer veleidade de, nem a longuíssimo prazo, conseguir amortizar um euro que seja do imenso investimento público a realizar; segundo, que este preço é mais caro do que o que se pratica para igual distância em todos os países europeus que têm TGV, o que quer dizer que em Portugal, com menor poder de compra, as pessoas pagam, quase sempre, mais caros os serviços públicos – e o próprio governo já assume este absurdo e esta incompetência como uma fatalidade incontornável, mesmo para o futuro; e, finalmente, o que me espanta ainda é constatar que, ao contrário do que diz a secretária de Estado, 100 euros para fazer a ligação de comboio de Lisboa a Madrid é mais caro 20 a 50% do que os preços praticados numa companhia aérea regular e mais do dobro dos preços numa «low cost». E, mesmo assim, não está garantido -antes pelo contrário -que a exploração não resulte em prejuízo.
Em resumo, o governo propõe-se: a) fazer um investimento público brutal, de que jamais se espera poder amortizar um cêntimo; b) praticar preços mais caros que serviços congéneres no estrangeiro e mais caros que a concorrência aérea; c) e, mesmo assim, teme-se que o serviço seja deficitário, porque, muito provavelmente, não haverá procura que o sustente.
Ou eu estou a ver tudo mal ou alguém perdeu o juízo. Domingo passado, por exemplo, o primeiro-ministro inaugurou, com pompa e circunstância, um novo troço do Metro Sul do Tejo, o qual, como sempre, demorou a construir muito mais do que o previsto e custou muito mais, uma pequena fortuna. Quarta-feira, o primeiro dia útil do novo troço, não houve passageiros. Comentário do responsável pela exploração do Metro: “O novo troço não tem grande utilidade”. Como?
2. O dr. Jardim inaugurou dois quilómetros de estrada na Madeira, para servir umas cinquenta ou cem pessoas, ao custo de dois milhões de contos o quilómetro – mais do que o Túnel do Marquês, com a mesma extensão, feito debaixo de terra e infinitamente mais complexo. Por estas e por outras é que o dr. Jardim berra como um possesso e quer ir a Tribunal Constitucional reclamar contra a nova Lei de Finanças Regionais, que, ao pôr-lhe um travão nos gastos sem medida, ameaça, a prazo, apeá-lo do poder. Entre outras coisas, a nova lei vai acabar com a marmelada de o Estado ter de avalizar todos os empréstimos que o dr. Jardim contrai despreocupadamente, sempre que se lhe acaba o dinheiro do orçamento. Eu estou de acordo em que o Estado pague o que são verdadeiros custos de insularidade: preços políticos nos transportes de e para o continente, serviços públicos mais baratos, impostos mais baixos para residentes e empresas. Mas para que o dr. Jardim se mantenha no poder feito uma lapa graças às inaugurações de obras sumptuárias ou para financiar os negócios dos seus correligionários já dei o que tinha a dar. Eles não queriam ser independentes? Por mim, ao fim de tantos anos a ter de aturar e pagar o dr. Jardim, cheguei a uma conclusão simples: pois que sejam!
3. Momento verdadeiramente histórico: um autarca algarvio queixou-se de uma nova empreitada turística no seu concelho e manifestou-se preocupado com o excesso de construção. Mais: defendeu que os PDM são para cumprir e não para abrir excepções «ad hoc». Aconteceu em Loulé, com o presidente da Câmara, Seruca Emídio, e a história é verdadeiramente eloquente dos tempos de fartar-vilanagem que este governo introduziu no ordenamento do território. Ao arrepio da Câmara, o governo ‘suspendeu’ o PDM de Loulé para fazer aprovar mais um desses nefastos projectos PIN, a favor de um mega empreendimento turístico dos americanos da cadeia Hilton. Com toda a razão, o autarca de Loulé pergunta que mais excepções haverá e qual é o critério. Os PDM, recorde-se, foram uma imposição dos governos às autarquias para tentar disciplinar minimamente a construção, em especial no litoral. Durante mais de vinte anos, os autarcas lutaram contra os governos para conseguirem desrespeitar os PDM conforme as conveniências. Eis que agora aconteceu o inimaginável e é o contrário que se passa: um governo que obriga uma Câmara a fazer tábua-rasa do seu PDM. E ainda temos um ministro do Ambiente que se afirma “absolutamente confortável” com esta política!
Por: Miguel Sousa Tavares