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A verdade da mentira

O desporto transformou-se numa gigantesca máquina de fazer dinheiro para clubes, equipas, atletas e parasitas. Para patrocinar toda esta gente estão as receitas com publicidade, marcas de equipamento desportivo, direitos de transmissão televisiva, entre outras.

Entre a “espada” dos ganhos astronómicos e a “parede” dos resultados estão centenas de milhar de atletas do, dito, mundo civilizado, nomeadamente os do velho continente e os dos EUA.

Assim, em todos os desportos de massas, e da massa, a pressão para a excelência, tende a transformar atletas em máquinas, ou melhor, em carne para canhão. Num documentário do Observatório do Mundo, na TVI 24, são relatados, por vezes, na primeira pessoa, os horrores que muitos atletas sofreram durante a sua carreira e que lhes deixaram sequelas permanentes físicas e mentais, tendo levado companheiros seus à morte em consequência das mesmas.

Em atletas da ex-RDA e de Leste ocorreram mutações genéticas na descendência e abortos espontâneos como resultado dos coquetéis químicos ingeridos; em atletas de despostos de contacto, como o futebol e o futebol americano, apareceram doenças neurodegenerativas e em ciclistas houve mortes inexplicáveis e cancro como resultado dos abusos de substâncias dopantes. Este documentário faz-nos um retrato pungente e muito pouco romântico acerca do mundo da alta competição. Pela glória e êxtase das vitórias e pelos respetivos milhares ou milhões em contratos e prémios que se sucedem às mesmas, muitos atletas estão dispostos a viver uma vida de sofrimento atroz em treinos brutais, auxiliados por mentiras químicas e outros truques.

O escândalo Armstrong foi a ponta de um iceberg de falsidade desportiva que nos vêm transmitindo pela televisão ou a que assistimos in situ, mas que continua a mobilizar milhões de espetadores/consumidores e, com estes, grandes somas. Nós fingimos acreditar no que vemos ou então ignoramos completamente esta mentira. A alta competição é, a grande maioria das vezes, uma mentira, nas disciplinas em que músculos e pulmões são fortemente chamados a fazer o seu trabalho.

A Volta a França de 2015 teve 21 etapas e 3.360 km. Para aguentar esta enormidade, o pelotão tem que andar no limite legal de muitas substâncias ou ultrapassá-lo. Mas não queremos saber disso; no ciclismo queremos ver sangue, suor e lágrimas numa chegada ao “sprint” ao ponto mais alto da Estrela, dos Alpes ou Pirenéus. E por isso continuamos a alimentar esta mentira. Claro que existem atletas honestos e honrados em todas as disciplinas, mas, normalmente, ficam-lhes vedadas as grandes vitórias e os respetivos ganhos em detrimento dos superatletas da mentira. Então, muitos cedem à pressão dos patrocinadores e patrões e passam a ser “romanos em Roma” ou têm que retirar-se sem glória mas com honra, a qual de pouco lhes servirá à hora de porem comida na mesa.

O desporto com verdade está arredado, há muito, dos grandes palcos e afeta mesmo escalões inferiores, ficando por isso e cada vez mais restrito aos amadores (de amar, de amor).

Longe de ser um atleta, o “doping” que me faz sair da cama e ir pedalar para o frio, neve, chuva ou calor é a natural motivação de chegar ao objetivo traçado para o dia. Lisboa, Figueira, Coimbra, Sagres são, por vezes, o destino. É para lá que eu corro, numa corrida contra as minhas naturais limitações. O meu adversário sou apenas eu; os ocasionais companheiros de jornada não pedalam contra mim, mas comigo.

Sei que poderia utilizar uma miríade de químicos em farmácias e casas de desporto que me poderiam facilitar as longas jornadas, mas, ao utilizá-las, estaria apenas a enganar-me e a subverter a razão porque pedalo. A razão é a própria jornada, o seu fim e todas as vivências até lá.

Por: José Carlos Lopes

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