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A Última Vez

Quebra-Cabeças

Maria do Carmo Borges acaba de declarar, em entrevista a este jornal, que seria necessário que o seu partido se “partisse todo” para que ela aceitasse candidatar-se a mais um mandato autárquico. O gesto fica-lhe bem e deve guardar-se como penhor do seu espírito de sacrifício, embora não como garantia de solidez do PS local. Não acredito que seja muito genuína a sua disponibilidade para um último mandato autárquico, maior sendo a urgência em dar novo rumo à vida e por mais quebradiço que se revele o seu próprio partido. Este é o problema de Maria do Carmo Borges, mas há outros bem piores a ferver por todo o país.

Existe nas autarquias portuguesas uma doença, que eu baptizaria sumariamente como o “sindroma do dinossauro”, e que consiste na renitência em autarcas de longa data resistirem ao apelo do “último mandato”. A doença tem várias fases e começa por uma declaração solene do paciente. Este jura que não vai voltar a concorrer em “circunstância alguma” e que é tempo de renovar, de trazer “sangue novo” para a frente dos destinos autárquicos. Sente-se seguro da sua obra e confiante na vitalidade e capacidade dos que o irão substituir, embora desconfie, bem lá no fundo, da capacidade destes. É a fase em que se perfilam candidatos à sucessão, em que se dá início às movimentações e ao bailado do avanço, não avanço, recuo, conto espingardas, dou entrevistas, mostro-me, etc.

Vem depois o dia em que o autarca, tendo firmemente decidido que se não recandidatará mais, vai dar uma volta de despedida pela sua cidade. Nesse dia, que funcionará na etiologia da doença como “o dia da revelação”, tudo lhe vai parecer sujo, triste, feio, mal acabado. Vai reparar nos montes de entulho, nos edifícios feios em que vivem encaixotados os seus eleitores, no desordenamento urbano, no trânsito caótico, nos carros estacionados em segunda fila e terceira fila. Nesse dia a sua determinação inicial vai enfraquecer, embora por enquanto só um pouco, quase nada. Vai pensar “se eu ficasse só mais um mandato tinha tempo de melhorar as coisas, de acabar o trabalho”. É então o momento de dizer publicamente que só “uma vaga de fundo” o levaria a recandidatar-se.

Enquanto a vaga de fundo não chega, o nosso autarca espreguiça-se na sua poltrona presidencial. Imagina o seu sucessor a entrar por aquele gabinete dentro e começar a mexer em tudo. Imagina-o a pedir os dossiers mais polémicos, a fazer perguntas aos funcionários, a encomendar auditorias, a mexer em todos os papéis, a investigar e a descobrir coisas “muito graves” debaixo de cada pedra. Coisas que aterrarão de imediato nas mesas da comunicação social, em insinuação ou com nomes, preços, datas e moradas. Nesse dia, se não estiver de consciência tranquila, o nosso autarca vai concluir que não vai ter tempo para apagar o rasto das suas asneiras e que, para o fazer, vai precisar de pelo menos mais quatro anos.

Por: António Ferreira

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