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A surpresa

Agora, que os dias são largos como mares e altos como sóis, lembrei-me dele e da sua história. Era num tempo assim que ele percorria o Mediterrâneo em iates sucessivos, bebendo champanhe e comendo morangos, enquanto o sol declinava, dando ao horizonte a cor selvagem dessa fruta. No Inverno, o seu bronzeado era garantido por longas viagens nos mares e nas terras das Caraíbas, e, quando chegava à cidade do Tejo cinzento, esse tom de ouro na pele provocava a admiração de toda a gente.

Quem o via não esquecia a sua aparição, a sua presença, a sua partida. Tinha uma elegância que nascia nele. Era íntimo de um tio, também ele um “dandy”, do meu amigo Bernardo Futcher Pereira, que, em Barcelona, quotidianamente realiza o milagre de fazer crer que Portugal é um país contemporâneo. Tolerante e sedutor com os outros, este grande “gentleman”, que também era um “sportsman”, tinha método e exigência consigo. Pedia sempre a perfeição das coisas em que as suas mãos tocavam ou o seu corpo se enrolava! Vestia as roupas mais exactas, frequentava os restaurantes mais infalíveis, fazia as viagens mais certeiras, tinha as namoradas mais recentes, guiava os carros mais velozes. Num país em que os fatos, mesmo daqueles que se julgam elegantes, parece que foram feitos para os outros, o acerto do seu vestuário deslumbrava. O alfaiate que lho modelava tinha loja em Londres, na Savile Row, mas as gravatas só as comprava em Itália. As meias encontrava-as na Escócia e as toalhas com que limpava o corpo musculado vinham de Istambul. Abastecia-se de perfumes em Paris e de chocolates em Bruxelas. Do sobretudo Chesterfield ao blazer de caxemira, dos botões de punho com um rubi aceso aos suspensórios que comprava em Nova Iorque, tudo nele era insubstituível. Por isso, andava por Lisboa como por uma “passerelle” constante. Com a sabedoria daqueles que amam a felicidade, mas sabem que ela gera inveja e difamação, aparentava indiferença ou mesmo desdém por tudo o que o fazia contente.

E, se adorava escurecer o corpo, gostava de aclarar o espírito. Tinha a curiosidade da qualidade. Ia a Berlim ouvir Beethoven e a Bayreuth, Wagner. Em Milão via as óperas de Verdi e, em Nápoles, as de Bellini. Em Viena, escutava Strauss e em Nova Iorque, Stravinski. Em Edimburgo, Purcell e, no Convent Garden, Britten. Era o primeiro a ir a qualquer museu onde um quadro surgisse de novo numa parede. Não havia exposição, espectáculo, desfile de moda, festa onde não estivesse. Frequentava Veneza apenas no Inverno e o Rio de Janeiro na Primavera. A sua cultura era inseparável de um desprendimento e de uma leveza. Possuía uma escolhida biblioteca com encadernações de pele gravada com os ferros que encomendava com minúcia e esmero. Adorava o mais antigo e o mais moderno, os primitivos e os contemporâneos. Nas suas paredes havia dez quadros muito bons, que não precisavam de mais nada a não ser deles. A casa onde vivia era vasta, alta, com vista sobre o mundo.

Este Jacinto doutra cidade e doutras serras não tinha melancolia, nem tédio, nem cansaço, nem curvatura das costas. Erguia-se ao fim da manhã e continuava erguido ao fim da noite. Nunca trabalhara na vida. Pertencia a uma família com séculos e títulos, por fim quase sem dinheiro. Vivia ele, por isso, da amizade, do talento, do prestígio e do crédito. Convidavam-no para tudo, porque, sem ele, esse tudo era pouco. Quando estava, era o centro de uma circunferência humana: achava sempre a frase que depois se citava, o dito que se fixava, a graça que se repetia, o galanteio que se lembrava. A sua ausência tornava a vida menos viva. Por isso, o dinheiro dos seus amigos era o seu dinheiro; os barcos deles eram os barcos dele, as casas deles eram a casa dele.

Um dia, herdou uma imprevista fortuna de uma inesperada tia. Então, abriu os braços com resignação, respirou fundo e clamou: “A partir de agora, posso finalmente fazer a vida que sempre fiz!” E assim aconteceu, na terra e no mar, por muitos verões e muitos invernos…

Por: José Manuel dos Santos

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