Do anedotário da minha infância faz parte aquela expressão que dizia ser Marcelo Caetano um péssimo condutor: fizera sinal à esquerda e virara à direita. A hilaridade metafórica do chiste contrasta com as consequências reais da “infração”, que deixaria sequelas e fora sancionada por uma franja de cidadãos que demonstraria, à saciedade, o desacerto político que significara ter estacionado no decrépito parqueamento de sempre. Paulatinamente o novel estadista pagaria o facto de ter insidiado todos quantos se tinham devotado enganadoramente ao afã reformista, que não passara afinal de uma manobra ilusionista, insinuadora de cores primaveris dentro dos limites da invernia. Assim, o que fora um lance ambíguo para tranquilizar (ou debilitar) a oposição, veio a surtir o efeito contrário; tornava-se para o regime num fenómeno gerador de oposições e algumas delas surgiam do lado menos esperado, isto é, do conservador. Na verdade, a história, como a vida ensinam-nos que, muitas vezes, aquilo que dita a orientação das barricadas é meramente circunstancial decorrendo daí a construção de uma dialética acomodada à conjuntura e não o contrário, como seria espectável. E se um gesto, uma atitude, fazem por vezes sublevar mais energicamente do que todo um arrazoado ideológico, o certo é que aceitar uma sociedade que não assente em premissas doutrinais, mas apenas em atitudes e orientações meramente tecnocratas é cair na mais pura das ingenuidades, deixando prevalecer incólume uma irrecusável e cruenta realidade. Parece-nos que o que mudou verdadeiramente foi o paradigma: depois do colapso do comunismo (que servia, pelo menos, de princípio norteador do espectro político mundial) juntando-se-lhe os fenómenos decorrentes da massificação cultural e do indiferentismo político, as ‘ideologias’ vagueiam hoje numa estranha aliança entre um e outro que, sendo em si a perversão do conceito de “ideário” (pelo menos à luz das postulações de Hegel e Marx) – constituem para todos os efeitos um agregado ideológico, já que geram condutas e normativos grupais cada vez mais amplos, tendo já uma clara expressão social. Os cânones decorrentes do mesmo são tão imprevisíveis quanto dissimulados e a ambiguidade é a atitude que melhor serve o sistema. Os posicionamentos cívicos e sociais são convenientemente inconsistentes e muitas vezes dúbios, num regresso às estruturas sociais mais primitivas.
Ensina-nos a cultura clássica europeia que a ambiguidade é uma das mais perniciosas atitudes e cedo ou tarde se paga por ela. Os próprios gregos a apontavam como nefanda. Recorde-se que a mítica Guerra de Troia vem a ter origem na própria ambiguidade proporcionada e adotada pela divindade olímpica suprema. Como é sabido, consigna o poema homérico (e mesmo Eurípedes, sobretudo em “Andrómaca”, “Hécuba” e “As Troianas”) que quando a deusa Éris lançou a Zeus o desafio de escolher a mais bela entre Afrodite, Hera e Atena, este optou comodamente pela ambiguidade, delegando tal decisão no bucólico Páris, filho do rei Príamo de Troia. Aquele, facilmente subornável pelas três divindades, opta por indicar aquela que o favorecia sentimentalmente: Afrodite – que lhe prometeu o amor da mais bela das mulheres, Helena. Assim, Páris, com a ajuda de Afrodite foge com Helena, que era, todavia, esposa de Menelau, rei de Esparta – dando assim origem ao mítico conflito. Ou seja, a neutralidade dera origem à desarmonia. A expressão “pomo da discórdia” advém precisamente da maçã que Éris exibiu como “troféu” destinado à beldade maior… A história recente do país e os testemunhos civilizacionais europeus dizem-nos que a “síndrome de Éris”, advinda da debilitação das estruturas ideológicas, é prenúncio de desconserto. Tenhamos ao menos consciência da sua existência (também) nos tempos que correm…
Por: João Mendes Rosa