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A propósito do controlo biométrico da assiduidade nos hospitais públicos (parte II)

O objectivo passará a ser não se chegar atrasado ao encontro com o aparelho à hora certa. Seja à entrada, seja à saída. Imperará a ditadura do “dedómetro”. E é aqui que a verdade da escassez de médicos virá ao de cima; deixa de ser possível a prática da solidariedade (“ó colega, começa tu a minha consulta, enquanto acabo este exame ou esta cirurgia”), o desdobramento em funções que se sobrepõem será formal e legalmente impraticável e passa a ser muito mais complicado ir à procura da inovação lá fora sabendo nós que, quem cá fica a trabalhar, terá muito mais dificuldades em aguentar o barco sob o jugo da infernal máquina electrónica de controlo da assiduidade. Como se de uma fábrica carregada de funcionários e de boas condições de trabalho se tratasse.

Perguntem-se, caros leitores: o que acontecerá ao doente cuja cirurgia previsivelmente terminará para além da hora estipulada pelo aparelho? Acertaram na resposta: não chegará sequer a ser operado porque é impensável interromper uma cirurgia para, depois de despida a farda e descidas as escadas, colocar o dedo na máquina, voltar a subir, a equipar e retomar, já fora do horário, a cirurgia interrompida. Compreendem?

E perguntem-se, caros leitores, o que passará a acontecer se eu tiver um problema na minha viagem e verificar que vou chegar atrasado? Já não irei, como até agora, ligar ao colega que lá está para que segure o barco até à minha chegada. Não posso. Estou impedido de o fazer. Porque a máquina não perdoa. Não só me obriga a entrar a horas, como obriga o colega que lá está, a sair a horas. Solução: voltar para trás e justificar a falta. É a única forma de deixar a máquina satisfeita.

Ainda outro exemplo: e quando eu, médico da urgência, aproveitando um momento de acalmia, quiser ir dar uma ajuda à consulta abrindo mais um gabinete, como acontece tantas vezes, e deparar com um computador que me denuncia por não estar no meu local de trabalho? Ele não sabe que estou 5 metros ao lado a ajudar a que muitos doentes não tenham que esperar tanto pela hora da consulta. A máquina exige que se cumpra a lei e a lei manda que, durante esses períodos de acalmia, eu permaneça estóico, de braços cruzados, à espera da próxima urgência que não se sabe quando irá surgir. Os doentes que se lixem, perdoem-me a expressão. Compreendem melhor? Isto não é propriamente uma fábrica de sapatos.

Perguntar-se-á: e não conhece o ministro esta realidade? Sim, é a resposta. Claro que sim. É evidente que este ministro que, repito, de estúpido nada tem, sabe perfeitamente que estas medidas em nada contribuirão para um aumento da quantidade ou da qualidade dos serviços prestados. Contribuirão, isso sim, para uma diminuição da motivação por parte de quem se sentirá tratado como batoteiro, na forma de um reforço dos automatismos de “cumpridor de horário”, que prejudicarão em última instância os próprios doentes ao colocarem a nu as reais condições em que se trabalha nos hospitais públicos deste país. Então porquê?

A resposta remete-nos para a política. Pura e crua. Sabe este ministro e sabemos nós todos que o Serviço Nacional de Saúde sai caro. Custa muito dinheiro ao Estado e aos contribuintes. Quanto mais e melhor se trabalhar, mais se gasta. Eis o paradoxo em Saúde. Para mais diagnósticos, doentes, e cirurgias, mais dinheiro será preciso. Dessa consciência nasceu a ideia da “dupla tributação”: há que convencer os doentes a pagarem do seu bolso, pela segunda vez, aquilo que julgavam ter já pago com os seus impostos. Esta filosofia, que nada tem de “socialista” foi entusiasticamente apadrinhada por este ministro e pelo governo de que faz parte. Como disfarçar então as evidências? Como esconder o encerramento apressado de serviços e de hospitais, permitindo a sua substituição progressiva por grandes grupos privados? Como se consegue a magia de encerrar maternidades por escassez de partos e não corar de vergonha quando um grupo privado, poucos meses depois se propõe construir um hospital… com bloco de partos, como está acontecer em Chaves? Como queimar na passada a imagem dos funcionários que aí trabalham? Como granjear demagogicamente o apoio popular para tais medidas absolutamente inconsequentes? Dando a ideia, com a ajuda de meia dúzia de kapos que sempre aparecem nestas alturas, de que se vai acabar com a batota obrigando finalmente as pessoas a trabalharem! Daí à ideia de que tudo está mal por causa delas, vai apenas o espaço de uma impressão digital…

É evidente que a questão é muito mais densa e complexa e daria lugar a um debate muito mais profundo. Mas aqui não há espaço.

Não são animadores os tempos que vivemos; há um presente e um futuro marcados por uma geração “politicamente-correcta” que, no entanto, não joga limpo. Na saúde e não só. Uma geração que joga com a passividade das pessoas. Com o baixo nível cívico e cultural do povo. Que pouco se importa com as abstenções galopantes e que tem o despudor de aprovar tratados sem consultar o povo, com o voto de deputados-robots que provavelmente nunca os leram e nunca os lerão. Uma geração de políticos que divide para reinar mas que se une para nunca deixar de reinar. Uma geração de políticos que prepara sempre o terreno para quando sair do palco.

Pior que ser mal tratado é ser tratado como ingénuo.

Lamento, mas a partir de agora, antes de ser médico tenho que ir ali pôr o dedo antes que me marquem falta.

PS: Gostava imenso de saber o nome do dono da firma que fornece os aparelhos de controlo biométrico de assiduidade. Juro que gostava. A esta hora deve estar rico, o homem. Quem será?

Por: António Matos Godinho

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