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A propósito do controlo biométrico da assiduidade nos hospitais públicos

O sr. ministro da Saúde decidiu, a pretexto da introdução de medidas ditas reformadoras, instalar nos hospitais públicos o chamado controlo biométrico da assiduidade. Consiste o método em obrigar todos os funcionários hospitalares a colocarem a polpa de um dos seus dedos num aparelhómetro que, através da leitura electrónica da impressão digital, registará a hora exacta de entrada e saída.

A questão pode ser abordada por diversos ângulos. Comecemos pelo da intenção. Do ponto de vista do ministro, vale mais o anúncio e o impacto público da medida do que propriamente os seus resultados práticos; não é, aliás, a primeira vez que um ministro (ou ministra) da saúde se serve do estratagema de denegrir a imagem de funcionários por si tutelados para alcançar objectivos políticos manipulando a opinião pública. Está na essência das coisas. Eu explico.

O controlo fundamentalista das entradas e saídas dos funcionários só faria sentido se daí resultasse um aumento da eficácia das tarefas executadas. No caso dos hospitais isto traduzir-se-ia num aumento do número de doentes tratados, num aumento da qualidade desses mesmos tratamentos, na diminuição das listas de espera, etc., etc.

No entanto, sabe bem quem por cá anda, que não são estes os objectivos desta “obra-prima” do ministro da saúde porque os verdadeiros constrangimentos existem sobretudo (mas não só) a montante. Uma medida aplicada por igual a todos os hospitais públicos do país e que não tenha em conta as especificidades de cada um deles, de cada serviço, de cada região e, sobretudo, de cada tipo de tarefa executada, estará condenada ao fracasso criando uma geração de zelosos cumpridores de horários que se vêem obrigados a relegar a verdadeira natureza da sua função para secundaríssimo plano.

A perspectiva a partir da qual escrevo estas linhas é a de um médico de um hospital de uma pequena cidade do interior, situada num país que em muitos aspectos pouco se elevou acima do terceiro mundo. Isto faz toda a diferença. Não acredito que o ministro da saúde ignore a frágil dinâmica dos muitos hospitais distribuídos pelo país. O ministro da saúde deverá ser um homem culto e informado e, apesar de alguma incontinência verbal a que faz questão de recorrer de vez em quando, de estúpido não tem nada. O que quer fazer é consciente e traz água no bico.

O Hospital de Sousa Martins debate-se há muitos anos com graves problemas de falta de médicos. A ninguém passaram despercebidas as lutas para provimento de vagas que, a não terem existido, teriam conduzido ao colapso de diversos serviços. O mais mediático foi o caso da pediatria; no entanto, muitos outros serviços passaram e passam por crises muito menos mediáticas mas não menos intensas. Para além disto, há serviços que sobrevivem há muitos anos com quadros médicos preenchidos a 40, 50 ou 60% da sua real necessidade. Seja para quem de fora assista a estes problemas, seja para quem recorre aos serviços do hospital, torna-se difícil compreender a “ginástica” com que os profissionais mantêm serviços a funcionar, ou a sua capacidade para trazerem alguma inovação em termos clínicos que tem impedido que o hospital da Guarda fique irremediavelmente retido numa medicina do século passado. Exemplos disso são a analgesia do parto, a consulta da dor, a cirurgia da obesidade, os cuidados intensivos, a unidade de cuidados pós-anestésicos, a implantação de pace-makers, a consulta anti-tabágica, a emergência médica pré-hospitalar, o sistema de triagem na urgência, a cirurgia artroscópica ou de prótese do joelho, a facoemulsificação na cirurgia de catarata, etc., etc., etc. Se não me engano, todos os exemplos referidos foram sendo introduzidos no HSM num espaço de tempo que não vai para além dos últimos 10 anos. Muitos outros ficam aqui por mencionar. É óbvio que todo este esforço colectivo, a que acresce o papel de hospital com mais peso no ensino prático de medicina na Beira Interior, não pode ter sido feito por um bando de malandros que não cumpre horários e que por isso convém disciplinar à força de “dedómetros”. Este esforço, o de inovar mantendo a actividade assistencial com quadros médicos ultra-deficitários, tem sido conseguido à custa de muito sacrifício, muita entreajuda e, reconheço, muita daquela capacidade de improvisação em que os portugueses são mestres.

Uns dos inevitáveis paradoxos no quotidiano de um qualquer hospital são os tempos mortos. Aqueles minutos, às vezes horas, em que se espera pelo resultado de um exame, em que um profissional tem que esperar que outro profissional actue sobre um doente para depois poder tomar a sua decisão, os momentos que ficam por preencher porque determinada tarefa durou menos do que se pensava, ou porque um doente faltou, etc. Aprendemos, com o passar dos anos, a aproveitar cada instante, a desdobrar-nos em tarefas, acorrendo aqui e acolá, substituindo o colega que ficou retido com um doente mais problemático e que por isso começa a faltar noutro lado. Aprendemos, no fundo, a distribuir o tempo pelas tarefas, consultas, urgências ou cirurgias para que, no fim do dia, possam ser minimizados os estragos devidos à falta de médicos. Claro que por vezes há atrasos; há uma birra do miúdo que não se quer vestir, uma bicha no centro da cidade, falta de lugar para estacionar o carro, mas em nenhuma dessas circunstâncias fica um doente por ver, uma cirurgia por fazer. Agora a máquina pretende mudar tudo isto. (continua na próxima edição)

Por: António Matos Godinho *

* médico do Hospital Sousa Martins

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